sábado, 21 de dezembro de 2024

Artur Gomes - Couro Cru & Carne Viva

                        ENGENHO

 

minha terra

é

de senzalas tantas

enterra em ti

milhões de outras esperanças

soterra em teus grilhões

a voz que tenta – avança

plantada em ti

como canavial

que a foice corta

mas cravado em ti

me ponho à luta

mesmo sabendo – o vão

- estreito em cada porta

 

Artur Gomes

Em 1984 poemas meus foram publicados na Antologia Carne Viva, organizada por Olga Savary, considerada a primeira Antologia de poesia erótica publicada no Brasil, com a presença de poetas como Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar, Affonso Romano de Sant´Anna, etc.

 

ontem 3 janeiro 2025, assisti o depoimento de Sergio Ferro, dado ao Tutaméia https://tutameia.jor.br/ Sergio Ferro é arquiteto desenhista. No período da ditadura civil/militar 1964/1985 era professor da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Chegou a atuar como estagiário nos canteiros de obra de Brasília. Perguntado sobre as possibilidades de um mundo melhor, ele não teve dúvida em apontar o trabalho do MST - movimento dos sem terra e movimento dos sem teto. Inclusive afirmando que na França onde ainda mora continua a ajudar na divulgação desses dois movimentos. Se formos pensar profundamente a questão, vamos chegar a conclusão que o golpe de 1964 se dá pelo temor das Reformas de Base, formuladas pelo presidente João Gulart, e isso explica porque imediatamente logo no primeiro Ato Institucional, é cassado o deputado trabalhista Rubens Paiva, em 9 de abril de 1964, e vem ser assassinado dentro do Doi-CODI que funcionava dentro do quartel da PE na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca - Rio de Janeiro.

 

Leia mais no blog

Balbúrdia Poética – livro e manifesto

https://fulinaimatupiniquim.blogspot.com/


Isso é um poema ou uma navalha?

 Difícil a pessoa passar pela vida sem cometer poesia. Aquela paixãozinha, aquele namorico desfeito, aquela dor de cotovelo deixam a gente desamparado. E como psicanalista está caro e nem sempre fica bem buscar o consolo da mamãe, a gente corre depressa pro colo quente da poesia, fazendo uns versinhos que não conseguem ultrapassar os estreitos limites do eu apaixonado, do eu angustiado, do eu ferido. Para a maioria das pessoas, poesia é coisa que dá e passa, principalmente na adolescência. Raros são aqueles que conseguem romper o exíguo círculo traçado em redor de si para entrar no terreno da verdadeira poesia. A quase totalidade das pessoas que faz “poesia” julga que ser poeta é fácil. Um pouquinho de sentimento, uma frase iniciada com letra maiúscula, outras frases colocadas abaixo da primeira e ponto final. Pronto. Fiz um poema.  Poeta que é poeta saque que fazer poesia não é mole mas consegue escrever  um poema até quando a inspiração está efervescente no intestino e “não quer sair”.  Preste só atenção em Drummond .

 

“Gastei uma hora pensando um verso

que a pena não quer escrever.

No entanto ele está cá dentro

inquieto, vivo

e não quer sair.

Mas a poesia deste momento

inunda minha vida inteira”.

 

Eis aí o Estado de Poesia, comoção lírica todos nós temos pelo menos uma vezinha na vida. Transformá-los em verdadeiros poemas é que são elas. Artur Gomes começou, como todo mundo, fazendo seus versinhos, mas desde o início, revelou um pendor incomum. A poesia para ele , era compromisso e não diletantismo ou fuga. Bem cedo, suas antenas sensíveis perceberam as misérias do mundo, particularmente as do em que ele vive, o terceiro. Sem armas brancas ou de fogo, impossibilitado de se transformar em guerrilheiro, ele fez da poesia, uma arma que cada dia afia mais.

 Terceiro mundista, brasileiro e malandro, ele não quis saber de espada, cimitarra, alfanjes, floretes, sabres e alabardes para travar suas lutas. Em vez, preferiu a navalha que corta frio e fino, sem que a gente perceba, até o sangue começar a escorrer. E sua marca não sai mais. Os poemas de Artur Gomes cortam feito navalha e deixam uma cicatriz indelével que nem plástica remove. Implacável e habilidoso no manejo da sua arma , ele arremete contra os fabricantes de injustiças. Sua poesia revela preocupações sociais, políticas e ecológicas, não poupando os mitos forjados pela história. Além de contestador, iconoclasta.

 Não se pense, porém que Artur Gomes vive mergulhado em profunda amargura. Ele sabe cantar também os prazeres do amor, do erotismo, a luxúria do ambiente tropical e o goso pela vida. Sua poesia é também resistência à desfiguração cultural do nosso país. Nem se pense também que a poesia em suas mãos, se reduz a um instrumento de protesto. Conquanto crítico e preocupado com o social, o político, e o ecológico, Artur Gomes demonstra também uma grande preocupação com questões técnicas. Artista, ele também é artesão. Trabalha seus poemas à exaustão, procura explorar as possiblidades da palavra e o suporte físico da página. Faz experiências no campo do concretismo, construindo poemas com palavras decompostas que só podem ser inteiramente compreendidas visualmente: a pá lavra;  re-par-tiu-se. Eis dois exemplos. Mas é fundamentalmente para o ouvido que se destinam os seus poemas. O espaço em que faz zunir e reluzir a sua navalha é sonoro e musical. O tempo passa e os poemas de Artur Gomes tornam-se cada vez mais musicais e ritmados.

 Outro traço que se acentua na evolução do seu trabalho: a concisão. A cada livro publicado, nos deparamos com um poeta sempre mais econômico. Na linha de um Oswald de Andrade e de José Paulo Paes, ele escreve poemas curtos, enxutos, incisivos, que ferem como o  diabo. Não rompe com a rima e com a métrica, mas não se deixa aprisionar por elas. Ambas estão presentes o tempo todo em seu trabalho sem que se possa garantir que não sejam ocasionais. A rima, por exemplo quando rompe, traz um efeito inusitado. Tanque rima com ianque, parque rima com dark. E aqui há outro aspecto digno de registro: Artur Gomes incorpora as novidades, mas nunca fica deslumbrado com elas. É moderno muitas vezes experimentalista, mas respeita a tradição. Não sei de suas leituras, mas deve tomar bênção aos clássicos. Não rompe com  a métrica, com a rima e com a estrutura do poema, mas não cai na poesia convencional. É agressivo, mas não perde nunca de vista o sentido maior da poesia. Isso não quer dizer, em contrapartida, faça arte pela arte, mas muito menos significa que se deixa envolver nas facilidades da poesia de protesto feita sob encomenda.

 O poeta está aí, inquieto, equilibrando-se na corda bamba. Pode começar a ler os seus poemas, leitor. Agora se você faz parte daquele grupo de pessoas que tiram partido da miséria e destruição, tome cuidado com Couro Cru & Carne Viva. Os  poemas navalha de Artur Gomes  certamente não terão piedade de você.

 

Aristides Arthur Soffiati

Campos, agosto de 1987

*

I

O DIA EM QUE MEU CAVALO RESOLVEU PINTAR AS CORES DA BANDEIRA 


a pá/lavra

arma poesia 


terra de santa cruz

 

ao batizarem-te

deram-te o nome:

puta

 

posto que a tua profissão

é abrir-te em camas

dar-te em ferro

                 ouro

                  prata

 

rios peixes minas mata

 

deixar que os abutres

devorem-te na carne

o derradeiro verme 


in(confidência mineira)

 

sal gado mar de fezes  

batendo nas muralhas

do me sangue confidente

 

quem botou o branco

na bandeira de alfenas

só pode ser canallha

 

na certa se esqueceu

das orações dos penitentes

e da corda que estraçalha 

com os culhões de tiradentes 


retórica

 

salve lindo pendão que balança

entre as pernas

abertas da paz

 

sua nobre sifilítica

                  herança

dos rendez-vous

de impérios atrás


 

eco lógica

 

               fosse o brasil

mulher das amazonas

caminhasse passo a passo

disputasse mano a mano

 

guardasse a fauna e a flora

da fome dos tropicanos

ouvisse o lamento dos peixes

jandaias araras  ciganos

nossos indígenas africanos 

 

não estaríamos assim condicionados

aos restos do sub-humano 


terceiro mundo

 

sonho rola no parque

sangue ralo no tanque

 

nada a ver com tipo dark

muito menos com punk

 

meu vício letal é baiafro

com ódio mortal de yanque


sub/VERSÃO

 

só desfraldando

a bandeira tropicalha

é

que a gente avacalha

com as chaves dos mistérios

dessa terra tão servil

 

tirania sacanagem safadeza

 

tudo rima uma beleza

com a pátria/mãe que nus pariu


pátria a(r)mada

 

só me queira assim caçado

mestiço vadio latino

leão feroz cão danada

perturbando o seu destino

 

e só me queira encapetado

profanando àqueles hinos

malando moleque safado

depravando os seus meninos

 

só me queria enfeitiçado

veloz macio felino

em pelo nu depravado

em sua cama sol a pino

 

e só me queira desalmado

cão algoz e assassino

duplamente descarado

quando escrevo e não assino 


relatório

 

I

na sala ficaram cacos de pratos

espalhados pelo chão pedaços do corpo retidos entre o corredor após o interrogatório um cheiro de pólvora e mijo misturados a dois ou três dias sem banho depois de feito sexo

só o fogo da verdade exalando odor e raiva quando em verde conspiravam contra nós 

em são cristóvão o gasômetro vomitava um gás venoso nos pulmões já cancerados nos quartéis da cavalaria 


 

II

eu me lembro

o sentimento era náuseas nojo asco

quando as botas do carrasco

bateram nos meus ombros com os cascos

jamais me esqueci o nome do bandido escondido atrás dos tanques

e

se chamavam

                   dragões da independência

e a gente ali na inocência

comendo estrumes  engolindo em seco as feridas provocadas por esporas

aguentando o coice o cuspe

e

    a própria ira

                          dos animais de fardas

batendo patas sobre nós 


III

com a carne em postas sobre a mesa

o couro cru o coração em desespero

o sangue fluindo pelos poros pelos pelos

 

eu faço aqui

meditações sobre o presente

re cria ando

                      meu futuro

tentando só/erguer

as condições pra ser humano

visto que tornou-se urbano

e re par tiu

                 se

em mil pedaços

visto que do sobre-humano

restou cabeça pés e braços 


pós: ANT:PÓS

 

enquanto nós poetas

tentamos mostrar

a burguesia lá

                     do alto

qual de nós

                     é mais concreto

os profetas do planalto

vão fudendo o povo inteiro

com um pau

bem grosso e reto

- e a poesia?

 

continua não passando

de um simples objeto


art pop

 

macunaíma

ilumina o lobisomem

na selva de new York

 

o rato roeu ea roupa

do gênio da art pop

 

nosso samba popular

não precisa ser estar

cantando rock

 

geleia geral

 

a coisa por aqui

não mudou nada

 

embora sejam outras

siglas no emblema

 

espada continua a ser espada

poema continua a ser poema

 

pessoa

 

não tenho pretensões

de ser moderno

nem escrevo poesia

pensando em ser eterno

 

veja bem na minha língua

as labaredas do inferno

e só use o meu poema

com a força de quem xinga 



II

rente a pele

contra o muro

eu te grafito no escuro

 

quero um poema que revele         poesia em sua pele  


genital

 

pasto no cosmo

a soja secular de Jardinópolis

onde os discos-voadores

sobrevoam meu nariz

na cara das metrópólis

 

no centro ao sul

os cemitérios

possuem mais mistérios

que a nossa vã filosofia

 

tem um animal de vagina espacial

na poesia

                     &

                     um grande pênis roxo

milenar

              feito aspiral em círculo

preparando imenso orgasmo

pra festejar o fim do século


BR – 101

 

ah! meu amor

não te esqueci

ainda procriando no meu corpo

os micróbios do teu sangue

                                       enlouqueci

 

overdose nu vermelho

 

retesar as cores

e os músculos

com os dedos agarrados no pincel

 

se faltar carne

pra roçar os óvulos

a gente jorra tinta no papel 


magia

 

quando meto pés

em tuas matas

 

selvagem índio

pássaro animal

 

devasto céus sem ter limites

com poesia sobrenatural 


tropicalirismo

 

girassóis pousando

nu teu corpo: festa

beija-flor seresta

         poesia fosse

 

esse sol que emana

do teu foto farto

lambuzando a uva

        de saliva doce 


tropicalha

 

vendo a lua leviana

no império das bananas

 

papagaios periquitos

                   graviola

 

a fruta eu chupo morena

semente eu planto cigana

 

na selva pernambucana

nossa língua deita e rola


 lençóes de renda

 

poderia abri teu corpo

com meus dentes

rasgar panos e sedas

 

com as unhas

arreganhar as tuas fendas

desatar todos os nós

 

da tua cama

arrancar os cobertores

rasgando as rendas dos lençóis

 

perpetuar a ferro e fogo

minhas marcas no teu útero

meus desejos imorais

 

mal/dizendo a hora soberana

com a força sobrehumana dos mortais

quando vens me oferecer migalha e fruto

como quem dá de comer aos animais


alucinações (in)terpoéticas

 

o que é que mora

em tua boca bia?

um deus um anjo

ou muitos dentes claros

como os olhos do diabo

e uma estrela como guia?

 

o que é que arde

em tua boca bia?

azeite sal pimenta e alho

résteas de cebola

carne krua do caralho

um cheiro azedo de cozinha

tua boca é como a minha?

 

o que é que pulsa

em tua boca bia?

mar de eternas ondas

que covardes não navegam

rios de águas sujas

 onde os peixes se apagam?

 

ou um fogo cada vez mais dante

como este em minha boca

de poeta/delirante

nesta noite cada vez mais dia

em que acendo os  meus infernos

                            em tua boca bia? 


lunática

 

um gato noturno

atira pedra nas estrelas

palavras e mais palavras

na carne da princesa

 

onde o papel não bate

onde o pincel não toca

 

o gato noturno lambe a barriga

bem perto da virilha

e trepa

           no muro mais próximo

tentando alcançar o outro lado das rua

em seu instante letal

de desespero e                                solidão

 

froydiana

 

azul são os teus olhos

a cor dos pelos não conheço

teus seios ainda não toquei

 

dracena – é uma terra roxa

nave extra/terrena

que humanos não decifraram

pequena vagina/virgem

onde os dedos ainda não entraram

 

e os cachos de uvas

apodrecem entre teus dentes

com um cheiro de leite ardente

esguichando na distância 


alguma poesia 


 não bastaria a poesia deste bonde
que despenca lua nos meus cílios
num trapézio de pingentes onde a lapa
carregada de pivetes nos seus arcos
ferindo a fria noite como um tapa
vai fazendo amor por entre os trilhos.

 

não bastaria a poesia cristalina
se rasgando o corpo estão muitas meninas
tentando a sorte em cada porta de metrô
e nós poetas desvendando palavrinhas
vamos dançando uma vertigem
no tal circo voador.

 

não bastaria todo riso pelas praças
nem o amor que os pombos tecem pelos milhos
com os pardais despedaçando nas vidraças
e as mulheres cuidando dos seus filhos.
 

 

não bastaria delirar Copacabana
e esta coisa de sal que não me engana
a lua na carne navalhando um charme gay
e um cheiro de fêmea no ar devorador

aparentando realismo hipermoderno
num corpo de anjo que não foi meu deus quem fez
esse gosto de coisa do inferno
como provar do amor no posto seis
numa cósmica e profana poesia
entre as pedras e o mar do Arpoador
mistura de feitiço e fantasia
em altas ondas de mistérios que são vossos

  

não bastaria toda poesia

que eu trago em minha alma um tanto porca,

este postal com uma imagem meio Lorca:
um bondinho aterrissando lá na Urca
e esta cidade deitando água em meus destroços
pois se o cristo redentor  deixasse a pedra
na certa nunca mais rezaria padre-nossos
e  na certa só faria poesia com os meus ossos.


Artur, acabo de ler as publicações recebidas, gostei muito da MVPB/11. Novos rumos. Gostei do Suor & Cio. Poemas antológicos. Difícil destacar um.

          Affonso Romano de Sant`ana

*

Fortaleza, 4/9/86 

Companheiro Buss

Acabo de ler o “Boi-Pintadinho”. Sinto-me boi na boiada de Artur Gomes. O boi desse livro está reproduzido em todos os quadrantes. Esse universalismo conseguido pelo autor é uma das coisas mais difíceis da arte poética. Além do mais, está um livro bem transado graficamente.

Obs.: trecho de uma carta de José Batista de Lima, para Alcides Buss.




Suor & Cio

MVPB Edições 1985

A Poesia Liberada de Artur Gomes

 

Há uma passagem em Auto do Frade, de João Cabral, que me chamou a atenção:

“-Fazem-no calar porque, certo, sua fala traz grande perigo. – Dizem que ele é perigoso mesmo falando em frutas passarinhos”.

Vislumbro aí uma espécie de definição do alto poder transgressor da poesia , do poeta, da arte em geral: deixar fluir uma energia de protesto e indignação, crítica e iluminação da existência, qualquer que seja o pretexto ou o ponto de partida.

Por exemplo - : Suor & Cio, novo poemário de Artur Gomes. Na sua primeira parte(Tecidos Sobre a Terra), temos um testemunho direto sobre as misérias e sofrimentos na região de Campos dos Goytacazes, interior fluminense. Não se canta amorosamente, as lavouras de cana de e grandes usinas, os aceiros e céus de anil. Ao contrário. Ouvimos uma fala que “traz grande perigo”, efetivamente ao denunciar – com  aspereza e às vezes até com certo rancor – a situação histórico-social, bruta e feroz, selvagem e primitiva, da exploração do homem no contexto do latifúndio e da monocultura.

 

 “usina

mói a cana

o caldo e o bagaço

usina

mói o braço

a carne o osso

 

Mas esta poesia dura, cortante e aguda, mantém igualmente a sua força de transgressão – continua revolucionária e perigosa – mesmo quando tematiza (principalmente em Tecidos Sobre A Pele, segunda parte do livro), as frutas, ou prazer sexual, os seios, o carnaval, o mar, e os impulsos eróticos. Por detrás dos elementos bucólicos e paradisíacos (só nas aparências, bem entendido), eis que explode o censurado o reprimido, o que não tem vergonha nem nunca terá:

 

“arando o vale das coxas

com o caule da minha espada

no pomar das tuas pernas

eu plano a língua molhada”

 

Por isso, frequentemente os poemas se debruçam sobre o próprio ofício do poeta, e sobre o próprio sentido do fazer artísticos. Ofício de artista, experiência de poeta: presença e risco e da violação das normas injustas: carnavalizando, desbundando a troup-sex, infernizando o céu e santificando a boca do inferno, denunciando o rufo dos chicotes, opondo-se aos donos da vida que controlam, o saldo, o lucro e o tesão.

Os versos de Artur Gomes querem ser lidos, declamados, afixados em cartazes, desenhados em camisas. E vieram para ficar nas memórias das bibliotecas da nossa gente, apesar do suor e do cio, graças ao suor e ao cio:

 

“com um prazer de fera

e um punhal de amante”.

 

Uilcon  Pereira

são paulo, julho, 1985 

*

Mesmo com incursões no teatro e na música popular, Artur Gomes se mantém fundamentalmente poeta. Retrata o homem, enquanto ser social , sem perder contudo as transparências individuais. Com “Suor & Cio” penetra na realidade de nossa Campos dos Goytacazes, onde a rudeza das vidas nos canaviais contrasta com o fausto dos casarios.

Ao denunciar a estreiteza da vida dos trabalhadores o faz em tom poético e, consequentemente perceptível à sensibilidade humana, sem descambar para o panfletarismo – atalho fácil para os que não conseguem superar a barreira da criatividade. Por ser criativo dentro de uma simplicidade envolvente, Artur Gomes descobre nos atos comuns razões que transcendem à percepção média. Nunca é demais lembrar que “o homem comum vê; o artista antevê.”

Na primeira parte de “Suor & Cio”, dedica-se à denúncia político-social mas na segunda “Tecidos Sobre A Pele”, faz observações sobre a fonte inesgotável de todos os poetas – o Amor. Contundente, às vezes, Artur assume corajosamente vontade quase sempre nunca explícitas. Comprimido por convenções sociais, o homem deixa-se omitir optando por metáforas frustrantes. Artur com sua poesia resgata a possibilidade de sermos plenos.

 

Celso Cordeiro Filho

Jornalista

*

Para ROSANA

FLORA

E FILIPE


I parte

Tecidos Sobre A Terra

FILIPE

 

filho de poeta

faz da terra

água e pão.

 

dilata músculos

do pai

clareia ventre

da mãe

retesa nervos

das mãos

encharca vasos

do corpo

transborda veias

do chão


TERRA

 

antes que alguém morra

escrevo prevendo a morte

arriscando a vida

antes que seja tarde

e que a língua

da minha boca

não cubra mais tua ferida


II


entre/aberto

em teus ofícios

é que meu peito de poeta

sangra ao corte das navalhas

minha veia mais aberta

é mais um rio que se espalha


III

 

terra, o que me dói

é ter-te devorada

por estranhos olhos

 

e deter impulsos

     por fidelidade


URBANUS

 

debruçam no meu peito

sinais de sonhos, marcas

de fracasso

 

trafega entre meus dentes

vinhoto nas gengivas

saliva no bagaço

 

entre os bueiros

do meu ventre

coração em carne viva

sangra do homem

seus pedaços


UTOPIA

 

ó terra incestuosa

de prazer e gestos

não me prendo ao laço

dos seus comandantes

 

só me enterro a fundo

nos teus vagabundos

com um prazer de fera

e um punhal de amante


 

CAMPOS

 

levo-te nas entranhas

fuligem ferro pó

e o ódio declarado das usinas

injetado na veia

até os ovos

 

nos olhos:

a visão encarnecida

do rufo dos chicotes

na cara e no suor

 

levo-te: escrava

na certeza de não mais

sangrar em teus aceiros

ou enterrar-me até os ossos

em teus canaviais


MOAGEM

 

na orgia verde

de uma nova safra

o homem lavra

:

a esperança atenta

nos lençóis de palha


ENGENHO

 

minha terra

é

de senzalas tantas

enterra em ti

milhões de outras esperanças

 

soterra em teus grilhões

a voz que tenta – avança

plantada em ti

como canavial

que a foice corta

 

mas cravão em ti

me ponho à luta

mesmo sabendo – o vão

- estreito em cada porta

 

Obs. Este poema está publicado na Antologia CARNE VIVA poesia erótica org. Olga Savary – 1984 - 



MOENDA

 

usina

mói a cana

o caldo e o bagaço

 

usina

mói o braço

a carne o osso

 

usina

mói o sangue

a fruta

e o caroço

 

tritura suga torce

dos pés até o pescoço

 

e do alto da casa grande

os donos do engenho controlam

o saldo & o lucro 


USINA

 

rente à palha dos aceiros

o suor escorre à face

nas entranhas do nariz

 

e no solar da casa grande

é uma tarde de festas

regada a vinhos de Paris


ACEIRO

o sol  esconde a ira

e vem o parto

como fruto

 

pois é aqui que o homem sangra

para o lucro e o saldo bruto 


CANAVIAL

 

minha terra é aqui

onde e barro e carne

misturam-se num só corpo

 

onde suor e sangue

transformam-se

em um só espírito

 

onde matar a sede

é não ter o líquido

e matar a fome

é não ter o pão

 

onde o negror da pele

me transporta ao fogo

dos olhos de maria

na primeira escravidão


SANTA CRUZ

 

como outra qualquer

vai moendo

sem adiantar gritar

que está doendo

 

porque o dono da usina

vai metendo

 

até que entre os dentes da moenda

escorra o caldo da moagem

e só o dono da engrenagem

vai bebendo 


cacomanga

 

ali nasci

minha infância

era só canaviais

 

ali mesmo aprendi

a conhecer os donos de fazendas

e odiar os generais 


NOVO HORIZONTE

 

um padre de saia preta

segue à risca

seus instintos

tendo o usineiro do lado:

 

dá hóstia para os famintos

e vento pros flagelados 


BAIAFRO

 

essa áfrica nos meus olhos

e navegar é minha sina

em toda febre todo fogo

que incendeia o continente

nos teus olhos de menina

eu sou um poeta

e nunca fui a china

mas vermelho é o meu sangue

desde que nasci


 

sede dos meus olhos

 

carinhosamente

bebo os olhos teus

pra matar a sede

e aflição dos meus

toda água desse rio

beberia eternamente

pois a minha sede

não morre de repente:

 

é paixão

que não tem hora pra chegar

barco que vai embora

sem saber voltar

navegando mar inteiro

vales rios velas cais

pois a sede dos meus olhos

não se mata nunca mais 


equilibrista

 

sei que os loucos

sempre cantam nos hospícios

e eu, canto aqui

o meu poema carne & osso

comendo as sobras do tacho

raspando o fundo do poço

 

correndo o mesmo perigo

enquanto ginga enquanto samba

minha palavra meu ofício

mas uma vez na corda bamba 


passando a limpo

 

I

loucura é não entender

a razão da poesia

em universo cosmo plástico

língua transcendental

em céus de boca

onde palavras tomam formas

e flutuam dimensões

 

II

loucura é não perceber

a santidade dos ladrões

a fome a sede o vício

coisas da social e da favela

“a carne seca na janela”

o desfile da portela

a mangueira verde e rosa

e os ratos passeando nos porões

 

III

loucura é ouvir

o rugido dos leões

na arquibancada

do pão que o diabo amassou

e não cumer a outra banda

que o brasil deu pra hollanda

não sacar paulo ciranda

essa finíssima presença

nem conhecer marco valença:

ó baby

loucura ainda nem começou


gesta

 

feroz

o índio

ainda via

o sol

 

a festa

fazia

 

o parto da raça humana

que hoje se desengana

e gente não pari mais 


 

indi/gesta

 

ê fome negra incessante

febre voraz gigante

ê terra de tanta cruz!

 

onde se deu primeira missa

índio rima com carniça

no pasto pros urubus  


indígena

 

coração tombado

no tacape branco

:

fogo e fúria

de fuzil

 

onde  o planalto mata

veia agonizando

na feroz/cidade

banco do brasil 



herói nacional

 

meu coração marçal tupã

sangra tupi e rock and roll

meu sangue tupiniquim

em corpo tupinambá

samba jongo maculelê

maracatu boi-bumbá

a veia de curumim

é coca cola e guaraná 


tirania

 

ó baby

o meu sangue não é blue

nem tampouco jazz

em tua carne azul

 

estou de pé

olhando o front

e não aceito o horizonte

com a tirania do norte

ditando regras no sul 


sonhando estar em cuba

 

meu coração

não é de osso não é de vidro

não é de aço nem é de pedra

impunimente é só coração

 

meu coração não é de hoje

conta por conta guarda em segredo

ama de longe ativamente

é só coração

 

meu coração não é verde amarelo

mas vive num país independente

só faz revolução não se arrepende

tramando a nova forma

do que sente

 

quando rumba brasileiramente

quando dança

algum bolero ardente

sonhando estar em cuba

macumba libremente 


braziliana

 

coração amordaçado

é simplesmente

nervo retorcido

 

coração apunhalado

é plenamente

nervo meu ferido

 

sangra coração

em pele e osso

couro envelhecido

 

salta numa praça

brinca de pirraça

mesmo assim fudido


 

tro/pica/lizando

 

I

o poeta esfrangalha a bandeira

raia o sol

tropical bananeira

na geleia geral brasileira

o céu de abril

não é de anil

bem general é my brazyl

II

minha verde amarela

esperança

portugal já vendeu

para a frança

e o coração latino

balança

entre o mar

de dólar do norte

e o chão

do cruzeiro do sul

 

III

o poeta estraçalha

a bandeira

raia o sol marginal

quarta-feira

nessa porra estrangeira

e azul

que a muito índio dizia:

“foi gringo

que trouxe no cu”


re/verso

 

oswaldianamente

ainda não sei bandeira

nem levo o barco

ao rei da vela

:

minha paixão

ainda é mangueira

desfilando na portela 


                                  seio da terra

 

bem no centro do universo

te mando um beijo ó amada

enquanto arranco uma espada

do meu peito varonil

 

espanto todas estrelas

dos berços do eternamente

pra que acorde toda essa gente

deste vasto céu de anil

 

pois enquanto dorme o gigante

esplêndido sono profundo

não vê que do outro mundo

robôs te enrabam ó mãe gentil!


para Torquato Neto

 

aqui estou na brasileia tropicalha

em populácea militância

pornofágica

desbundando a marginalha

em poesia su-real

para esquecer que a circunstância

é um pouco trágica

e não dizer

que o meu brasil dançou geral


trincheira

 

há uma gota de sangue

entre meus olhos

                      e os teus

e muitas velas acesas

pra salvar a nossa carne

e bocas cheias de dentes

   mastigando a nossa morte

mas eles é quem morrerão

meu amor: num grande susto

         quando nus virem

amando nessa cama

de ferro e de pau duro


1º de abril de abril

 

       telefonaram-me

             avisando-me

        que vinhas

 

na noite

uma estrela

ainda brigava

com a escuridão

 

         na rua

         sob patas

         tombavam

         homens indefesos

 

esperei-te

20 anos

e até hoje

não vieste

à minha porta

 

- foi um puta golpe!


brasil

 

este país

nunca existiu

            aqui

nunca tivemos

1º de abril

é brincadeira da minha poesia

putaria do meu coração

tudo não passou de fantasia

- ou obra de ficção


II parte

TECIDOS SOBRE A PELE

 

flora

 

reluz em mim amor e flora

que tal riqueza em luz aflora

clara evidência total menino

com tal beleza voz e destino

 

e se não fores mansa

é que virás do mar

e virás da mãe flor lumiar

e virás da tarde e do amanhecer

e será tão linda que ainda vai saber

:

se andei por folhas

foi pra te germinar

e deixar sementes

pra te alimentar

 

e se não fores flora

é o que vou fazer

desse grão de vida

que estás pra nascer


coração de galinha

 

não sou tigresa

em tua cama

nem caviar em tua mesa

não sou mulher de fama

muito embora sempre tesa

 

não vim da boca do lixo

saí da pele do ovo

meu coração de galinha

virou orgasmo do povo


coito


teu corpo é carne de manga

em meu pênis viril

enquanto sangra

quando beijo tua boca

               enfurecido

rasgando por trás

                 o teu vestido


cor da pele

 

áfrica sou: raiz & raça

orgia pagã na pele do poema

couro em chagas que me sangra

alma satã na carne de Ipanema

 

o negro na pele

é só pirraça

de branco

na cara do sistema

 

no fundo é amor

que dou de graça

dou mais do que moça

no cinema



carne proibida

 

o preço atual

proíbe

que me coma

mas pra ti estou de graça

pra ti não tenho preço

sou eu

quem me ofereço

a ti

:

músculo & osso

leva-me à boca

e completa o teu almoço

ofício

 

ponho minha gema

em tua blusa

para que pule

no teu peito

minha musa

toda tensão

de ter tua pele

em meu poema 

profissão


meu ofício

é de poeta

pra rimar

poema e blusa

e ficar em tua pele

pelo tempo em que me usa


frutas


no vermelho dos morangos

marron dos sapotis

na pele das romãs

carne das goiabas

polpa das amoras

licor das melancias

e tropical abacaxi

 

no gosto que elas tem de beijo

e jeito que elas tem de sexo

penetro os dentes mordendo

chupando dragando em ti

 

a terra das frutas na boca

arando o vale das coxas

com o caule da minha espada

no pomar das tuas pernas

eu planto a língua molhada 


primeiro amor 


montado no sol a pino

no pasto do céu em chamas

eu cavaleiro menino

enlouqueci na sua cama 


vôo selvagem


I

correndo nos cavalos

cresceu

meu coração de égua

enxertado

em ilusões de águias


II

meu coração galopa

pelo campo à fora

no dorso dos poemas

na pele das esporas

 

III

diante da cerca

estão os bois

saciando o sexo:

corpos ao sol

selvagens & parceiros

guiados pelo odor

amando pelo cheiro

 

IV

no pasto

o encontro boca à boca

a égua abriu-se toda

para que nela

entrasse

 

          bastasse ver

o seu pulsar

          e gozo

para que o alazão também

:

       entre o capim

gozasse

 

V

com espada em riste

galopamos pradarias

e lutamos ferozmente

por dois segundos e meio

 

tua fúria era louca

e agarrei-me em tuas crinas

para não cair na lama

 

mas o amor era tanto

e tanto era o prazer

quando fomos pra cama

não tinha mais o que fazer


coração civil

 

meu coração vadio

quando está no cio

faz comício

 em seu quintal

vai pro bar e bebe o rio

e canta um hino nacional


tempero

 

é preciso socar certas palavras

com sal pimenta & alho

para dar o gosto

o ardido

que se traz na boca

é tempero mal cuidado

 

é preciso cortar o mofo

das ações de certas palavras

para quando for poema

ter ação presente

penetrar a carne

e ter sabor de gente 


mulher

 

meu poema

se completa

em seu vestido

roçando sua carne

no algodão

                   tecido 


minerador

I

mulher é lua nova luz ativa 

teu corpo manso

é cobre nos meus braços

um fogo em prata

aceso nos meus olhos

minhas gerais

senhora dos meus passos

 

II

para plantar teu corpo

em meu ofício

é que me fiz

metade em seu amor

para plantar a flor

no meu suplício

é que me fiz de ti

                       minerador  

 

III

coberto em couro cru

& carne viva

amor brilhante diamante e luz

estrela e nave nua corre linda

sobre teu seio

desperto em vera cruz

 

IV

 

no sol que banha

o teu suor e sangue

unhas de ferro

coração de cobre e aço

veia da américa

canção e flor do mangue

cortina aberta

estrada pro meu leito

metade de um país

metade do meu peito 


rosana

 

nadar por sobre o peixe

dos seus olhos

e penetrar as profundezas

do teu útero

 

assim quando prepara

um outro nascimento

na escuridão

que a sua luz dê Flora

 

e com um membro teso

vazar a claridade

que em teu seio mora 


aline

 

o mar é um grande macho

quando vagas ondas

te pulsando água

no pontal das pernas líquidas

penetrando ventre

pelos poros pelos

que desaguam frutos

de uma branca espuma

despetalando o bico

dos teu seio  enxuto  


simone

muito mais de um desejo

que não basta

o meu poema arrasta

um nome de mulher

na língua ultra molhada

marés e temporais

enchente alto mar

teu corpo navega

sem cais para ancorar


 elis

 

pau latina

mente

procuro o passo

te encontro pelo

à porta desse posso

em pele de estopim

:

e um barril de pólvora

explode no meu peito

puta que pariu!

mulher, estás em mim 


atafona

 

vaza meu corpo

seu nome atravessado

terminal nas minhas coxas

lançado ao mar das suas costas

onde ancoro meus navios

 

retesando o braço dos meus rios

na maré dos seus pontais

peixe punhal de branco sal

em suas pernas sensuais

quando sangra nos meus cios

toda água do seu cais


marisa gata mansa

 

afundas

tuas unhas fundas

viajas sub mundo

em doses de tensão

quando vibra tua voz

na voz do coração

 

e tua alma leve

tudo leva

tudo voa

quando tuas garras

de animal

sangra minha carne

de pessoa 


 halley

 

penetraria eu

o mar revolto em tua boca

queimando ao fogo do inferno

nus teus órgãos

grudado em tua pele

tudo em pelo

 

como quem montado

em tua alma

galopasse a língua fria

feito um cavaleiro

que nos céus

cavalgasse  o corpo de mulher

cometa incendiando a luz do dia 


carnavalizando

 

tropicaetanamente

meus versos uilconianos

em carnaval pela cidade

vão ficar durante o ano

desbundando a troup-sex

 

e a mulatinha andradiana

com bundinha a caetano

despe a gil bertinidade

no patamar do meu triplex


boca do inferno

 

por mais que te amar

seja uma zorra

eu te confesso amor pagão

não tem de ter perdão pra nós

eu quero mais é teu pudor de dama

despetalando em meus lençóis

 

e se tiver que me matar que seja

e se eu tiver que te matar que morra

em cada beijo que te der amando

só vale o gozo quando for eterno

infernizando os céus

e santificando a boca do inferno


apartamento

 

      entre teu quarto e sala

trafego meus cavalos

     com o prazer domando a fala

no quintal da tua cama

roçando a língua enquanto falo

nosso orgasmo se inflama 


êxtase

 

deixa eu pousar

pelo animal ereto

pulsando em tua boca

meu amor contrário às leis

 

expondo a fúria

do meu coração em festa

na virilidade

da sua pulsação

 

quando aninhar meu falo

em tua língua tesa

pondo a linha do horizonte

                presa

na plenitude da ejaculação


flor da pele

 

I

o beijo que não te dei

é parte que ainda

não re/partiu de mim

 

o que te dou

está na boca

fruta mordida

em teu seio

:

carne de amendoim

 

II

uma mulher caminha nua

na ponta da minha estrela

ou na ponta da tua estrela – nua

caminho eu

 

parte do mar e do fogo

na língua na assombração

parte da terra e do vento

na carne do pensamento

lavras do teu vulcão

 

III

alguma estrela cadente

varreu o pó do meu sangue

beijou o chão dos meus olhos

e o fogo azul deste mar

 

em grave e cruel desespero

igual corrente gadeia

com dente velos de aflição

 

comeu a carne na poça

voou com os seios da moça

e fez-se em constelação

 

IV

para voar com  tuas patas

é preciso estar de fato

com o corpo em êxtase

e todo sangue em poesia

 

pois se não no teu impulso

e voo pro grande sexo

sangrarás na virgindade

e morrerás de hemorragia 


exercício

 

com um dedo

abro

a tuca boca vagina

 

com dois

aperto

o bico do teu seio

 

e

ultra/passo

a porta do teu meio 


suor & cio

 

esperma do corpo meu

viaja dentro do teu

centro de espera

onde se vão

:

sonhos ilusões porções

de amor e gozo

água de rio

 

ao ter-te assim

carne animal

cheirando a cais

canção curral

          suor & cio


confissão

 

se em ti estou

é para alimentar o que não sou

e o que sou

não é represa

 

é veia pública sob patas

postas de sangue na mesa

nada mais me desacata

nada mais me é surpresa

 

cansei de ser correto

deixei de ser decente

eu quero mesmo é o paladar

da tua língua entre meus dentes


ser/teu

 

aqui me tens,

nesse segundo orgasmo

:

mata-me de prazer

que ainda é tempo

 

tira depois

todo excesso de saliva

que sempre vem à boca

após cumprido o ato

no instante exato de ser/teu

:

      morro

aqui e agora

 e se preciso sempre

mas o pensamento é testemunha

ontem era uma outra

quem me possuiu


galope

teus órgãos tem o dom

de devorar entranhas

mexendo nervos músculos

em mim, cavalo não domado

quando em tuas pradarias

esporas por querer

nossa carne nos lençóis

do mais líquido prazer


 luz do sol

 

molhada de mel

ponta de língua

espuma de sal

enquanto entra

no vale da púbis

quando vinga

o sol sensual

no seu estio

com a luz de cristal

gozando a fio

saliva meus dentes

enquanto beija

a boca entre/aberta

quando deixa

vagina em meus dedos

             feito gueixa 


poesia

 

I

chegas a mim

como uma égua assanhada

não quer saber do meu carinho

só que saber de ser trepada

 

II

eu te penetro

em nome do pai

do filho

do espírito santo

amém

:

não te prometo

em nome de ninguém


terra

 

amada

de muitos sonhos

e pouco sexo

deposito a minha boca

no teu cio

e uma semente fértil

nos teus seios  como um rio



*

Da Carne Da Palavra - por Tanussi Cardoso 

Ator, produtor, videomaker e agitador cultural, o poeta Artur Gomes tem assinatura própria. SagaraNAgensFulinaímicas, seu mais novo livro, repleto de citações a partir do título, é a prova generosa do que afirmo: um inventário da pulsação de sua escritura, uma das mais iluminadas, entre os remanescentes da geração que se inicia nos anos 60-70.

Mesmo mirando certa desconstrução narrativa, o autor semeia as raízes culturais, germinadas naquelas décadas, que desabrocharam como furacão em nossa arte, principalmente vindas da canção popular, com sua palavra cantada, da poesia marginal, da Tropicália, do Concretismo, do poema-postal, da poesia visual, do cinema e, mesmo, dos quadrinhos.

Todo esse caldeirão cultural, todas essas referências e linguagens eram (são) muito próximas: Caetano, Gil, Torquato, Glauber, Leminski, Waly, Gullar, Hilda Hilst... E é desse quadro geracional (e bem lá atrás,Drummond, Murilo Mendes, Bandeira, Cabral, Quintana, Mário, Oswald e Guimarães Rosa - e principalmente -, a trilogia dos malditos: Rimbaud, Baudelaire e Mallarmé, além dos ecos do mestre beat, Allen Ginsberg), é desse manancial criativo que o poeta consegue desarmar o que nele se encontra envolto, de forma atávica, e reafirmar seus próprios tempo e potência, com o refinamento de sua fala.

Ao unir todo artefato onde exista possibilidade de poesia, Artur Gomes habita o lugar entre a palavra e a imagem, ao experimentar os sentidos que lhe chegam, sugando os afluentes existentes nas estruturas tradicionais de nossas artes, e reescrevendo-os a seu bel-prazer, num mix de nostalgia e futuro.

“visto uma vaca triste como a tua cara:
estrela cão gatilho morro
a poesia é o salto de uma vara”

De forma particular, o autor parece nos indicar algo que se confunde com transgressão, mas, ao mesmo tempo, mantém a linha tênue da poesia clássica, ao flertar com um romantismo de tintas fortes, e tocando, igualmente, o surrealismo, com uma violência verbal, que cheira à flor e à brutalidade. Cada poema possui sua própria respiração, pausa e pontuação emocionais. Quem não gostar de sangrar e ir fundo no mais recôndito dos prazeres é melhor não prosseguir na leitura, mas quem tiver coragem de encarar a vida de frente e se deliciar com versos saborosos e extremamente imagéticos, entre no mundo do poeta, de imediato, e sentirá a alegria de descobrir uma poesia a que não se pode ficar indiferente.

“a língua escava entre os dentes
a palavra nova
fulinaimânica/sagarínica
algumas vezes muito prosa
outras vezes muito cínica”

Ainda que não pretenda novas experiências formais, o autor consegue alcançar perspectivas ousadas e radicais, em vários enquadramentos linguísticos, sempre disponíveis para o espanto, já que quando falamos de poesia, tocamos em lados inexatos, onde qualquer inversão de objetividade, e da própria realidade, é sempre bem-vinda. Sua poesia tem muito da desordem, da inobservância de regras, do não sentido, e apresenta um discurso contrário a certo pensamento lógico, fazendo surgir nas páginas do livro, algumas impurezas saudáveis.

“te procurei na Ipiranga
não te encontrei na Tiradentes
nas tuas tralhas tuas trilhas
nos trilhos tortos do Brás
fotografei os destroços
na íris do satanás”

SagaraNAgensFulinaímicas nos apresenta uma peça de tom quase operístico e, paradoxalmente, para um só personagem: o Amor. E o desenho poético dessa montagem pressupõe uma grande carga lírica, alegórica e, tantas vezes, dramática, ao retratar o som universal da Paixão, perseguindo a imagem ideal dos limites do desejo. Seus versos são movidos por esse sentimento dionisíaco, e por tudo que é excesso, por tudo que é muito, como na música de Caetano.

“te amo
e amor não tem nome
pele ou sobrenome
não adianta chamar
que ele não vem quando se quer
porque tem seus próprios códigos
e segredos”

E indaga e responde:

“até quando esperaria?
até que alguém percebesse
que mesmo matando o amor
o amor não morreria”

Em seu texto, há uma espécie de dança frenética, onde interagem os quatro elementos do Universo – Terra, Água, Fogo e Ar – numa feitiçaria cósmica em contínuo transe mediúnico. Poesia que é seta certeira no coração dos caretas e dos conformados, ao apontar para as possíveis descobertas inesperadas da linguagem, inebriada pela vida, pelo cantar amoroso, pelo encontro dos corpos.

“e para espanto dos decentes
te levo ao ato consagrado
se te despir for só pecado
é só pecar que me interessa”

Dono de uma sonoridade vocabular repleta de aliterações e assonâncias, que remetem à intensa oralidade e à pulsão musical, refletindo no leitor o desejo de ler os poemas em voz alta, o poeta brinca com as palavras, cria neologismos, utiliza-se de colagens originais, e soma ao seu vasto arsenal de recursos, o uso das antíteses, dos paradoxos, das metonímias, das metáforas, dos pleonasmos e, principalmente, das hipérboles, através de poemas de impactante beleza. Esse jogo vocabular, que a tudo harmoniza, transforma a dinâmica do verso, dá agilidade, tensão e ritmo envolventes a uma poesia elétrica e eletrizante. Um bloco de tesão carnavalizante e tropical - atrás de Artur Gomes só não vai quem não o leu.

“quero dizer que ainda é cedo
ainda tenho um samba/enredo
tudo em nós é carnaval”

De forma lúdica e irônica, reconstrói, ou reverte, as intenções de Guimarães Rosa, quando Sagarana se mistura à ideia de paisagens e ao sentido de sacanagens; e às de Mario de Andrade - onde Macunaíma reparte seu teor catártico em poéticas folias, ou em fulias de imagens, ou seja, em fulinaímicas poesias, banhadas de caos e humor.

“é língua suja e grossa
visceral ilesa
pra lamber tudo que possa
vomitar na mesa
e me livrar da míngua
desta língua portuguesa”

Ao seguir de perto o conceito metafórico do processo crítico e cultural da Antropofagia, o artista ratifica seus valores, com sua língua literária, e reafirma o ato de não se deixar curvar diante de certa poesia catequisada pela mesmice e pelo lugar comum, distanciando-se da homogeneidade de certo academicismo impotente e de certos parâmetros poéticos com que já nos acostumamos. De acordo com o próprio autor, revelado em uma entrevista, SagaraNAgensFulinaímicas é um pedido de bênção a seus Mestres, imbuído do teor catártico que sua poesia contém, como o fragmento do poema que abre o livro:

“guima meu mestre guima
em mil perdões eu vos peço
por esta obra encarnada
na carne cabra da peste”

E afirma:

“só curto a palavra viva
odeio essa língua morta
poema que presta é linguagem
pratico a SagaraNAgem
no centro da rua torta”

No livro, os poemas se interpenetram, linguisticamente, libidinosos, doces e cruéis, vampiros de imagens ferrenhas,num aparente jogo de representação, onde o rosto do poeta se mostra e se esconde, de acordo com a mutação e o reflexo de seus espelhos interiores. Seus textos ora afirmam, ora desmentem o já dito, a nos lembrar um de seus ídolos, Raul Seixas, e a sua metamorfose ambulante. Sentimentos contraditórios, como se o autor quisesse, propositalmente, escorregar segredos pelos nossos olhos, ambiguamente, rindo de nós, a nos instigar: “Desnudem a minha esfinge!”

“eu não sou flor que se cheire
nem mofo de língua morta”

Na verdade, sua poesia apresenta vários (re) cortes, várias direções, vários abismos e formas de olhar a vida e o mundo. Como se o verdadeiro Artur se dissolvesse em outros, a cada poema, e essa dissipação o transformasse em alguém improvável, impalpável. Errante. Artur Gomes, ele mesmo, são muitos. E todos nós.Afinal, “o poeta é um fingidor”, ou não?

“a carne que me cobre é fraca
a língua que me fala é faca
o olho que me olha vaca
alfa me querendo beta
juro que não sou poeta”

Tantas vezes escatológico e sensual, numa performance textual que parece uma metralhadora giratória, o seu imaginário poético explode em tatuagens, navalhas, sangue, cicatrizes, punhais, facas, cuspe, pus, línguas, dedos, dentes, unhas, seios, paus, porra, carne, flores e lençóis, como um paraíso construído num inferno, e toca o nosso céu interior, nas ondas de um mar verde escondido em nosso peito. Na nossa melhor alma.

Sem falsos pudores, o autor procura, em seu liquidificador de palavras, misturar o erótico, o profano e o sagrado, com cortes de cinismo e grande dose de humana solidariedade. Equilibrista na corda-bamba, sem rede de proteção, entre razão e delírio, instiga dualidades com seus versos de alta voltagem poética. Com linguagem rebuscada, seu trabalho ultrapassa os limites das páginas do livro, e reverbera como tambor, mesmo após o término de sua leitura.

“a carne da palavra
: POESIA

l a v r a q u e s o l e t r o
todo Dia”

A poesia de cunho social é, igualmente, referência obrigatória em seu trabalho, desde o início de sua carreira literária, marcadamente, em Jesus Cristo Cortador de Cana, de 1979, mas, principalmente, no memorável e premiado O Boi Pintadinho, de 1980. Esses poemas político-sociais, junto ao tema amoroso, também encontramos em outras obras importantes do poeta, como Suor & Cio, de 1985, Couro Cru & Carne Viva, de 1987 e 20 Poemas com Gosto de JardiNÓpolis & Uma Canção com Sabor de Campos, de 1990, e se inserem em todos os seus livros posteriores, que culminam agora em SagaraNAgensFulinaímicas.

Em suas viagens imemoriais, o poeta mistura São Paulo, Copacabana, Búzios, calçadas, origem, chão, mares, cactos, sertão, onde tudo sangra de maneira violentamente bela e sem volta. Só a língua a ser reconstruída em poesia.

“ando por são Paulo meio Araraquara
a pele índia do meu corpo
concha de sangue em tua veia
sangrada ao sol na carne clara”

Artur Gomes sabe que ao escritor cabe proporcionar beleza e prazer. Entende que a poesia existe para expressar a condição humana, tocar o coração e a emoção do outro, e dar oportunidade para que seu interlocutor tenha chances de conhecer-se mais e melhor. Eque só há um meio de o poeta conseguir seu intento: cuidar e aperfeiçoar a linguagem. Sempre coerente, Artur Gomes sublinha o essencial de seu pensamento, ratificando em seu trabalho que as duas maiores palavras da nossa língua são amor e liberdade.

“a coisa que me habita é pólvora
dinamite em ponto de explosão
o país em que habito é nunca
me verás rendido a normas
ou leis que me impeçam a fala”

SagaraNAgens Fulinaímicas veio confirmar o que os leitores do poeta já sabiam: Artur Gomes é um artista instigante, um cantador que desafia rótulos. No seu fazer poético, há um desfocar proposital da realidade, onírico e cinematográfico, que mergulha em constantes vulcões, em permanente ebulição – um texto em contínuo movimento. Sua poesia metalinguística, plástica, furiosa, delicada, passional, corporal, sexual, desbocada, invasiva, libertária, corrosiva, visceral, abusada, dissonante, épica é, antes de tudo, a poesia do livre desejo e do desejo livre. Nela, não há espaço para o silêncio: é berro, uivo, canto e dor. Pulsão. Textura de vida. Uma poesia que arde (em) seu rio de palavras.


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Artur Gomes - Couro Cru & Carne Viva

                        ENGENHO   minha terra é de senzalas tantas enterra em ti milhões de outras esperanças soterra em teus grilhões a voz...