ENGENHO
minha terra
é
de senzalas tantas
enterra em ti
milhões de outras esperanças
soterra em teus grilhões
a voz que tenta – avança
plantada em ti
como canavial
que a foice corta
mas cravado em ti
me ponho à luta
mesmo sabendo – o vão
- estreito em cada porta
Artur Gomes
Em 1984 poemas meus foram publicados na Antologia Carne Viva, organizada por Olga Savary, considerada a primeira Antologia de poesia erótica publicada no Brasil, com a presença de poetas como Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar, Affonso Romano de Sant´Anna, etc.
ontem 3 janeiro 2025, assisti o depoimento de Sergio Ferro, dado ao Tutaméia https://tutameia.jor.br/ Sergio Ferro é arquiteto desenhista. No período da ditadura civil/militar 1964/1985 era professor da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Chegou a atuar como estagiário nos canteiros de obra de Brasília. Perguntado sobre as possibilidades de um mundo melhor, ele não teve dúvida em apontar o trabalho do MST - movimento dos sem terra e movimento dos sem teto. Inclusive afirmando que na França onde ainda mora continua a ajudar na divulgação desses dois movimentos. Se formos pensar profundamente a questão, vamos chegar a conclusão que o golpe de 1964 se dá pelo temor das Reformas de Base, formuladas pelo presidente João Gulart, e isso explica porque imediatamente logo no primeiro Ato Institucional, é cassado o deputado trabalhista Rubens Paiva, em 9 de abril de 1964, e vem ser assassinado dentro do Doi-CODI que funcionava dentro do quartel da PE na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca - Rio de Janeiro.
Leia mais no blog
Balbúrdia Poética – livro e manifesto
https://fulinaimatupiniquim.blogspot.com/
Isso é um poema ou uma navalha?
Difícil a pessoa passar pela vida sem cometer poesia. Aquela paixãozinha, aquele namorico desfeito, aquela dor de cotovelo deixam a gente desamparado. E como psicanalista está caro e nem sempre fica bem buscar o consolo da mamãe, a gente corre depressa pro colo quente da poesia, fazendo uns versinhos que não conseguem ultrapassar os estreitos limites do eu apaixonado, do eu angustiado, do eu ferido. Para a maioria das pessoas, poesia é coisa que dá e passa, principalmente na adolescência. Raros são aqueles que conseguem romper o exíguo círculo traçado em redor de si para entrar no terreno da verdadeira poesia. A quase totalidade das pessoas que faz “poesia” julga que ser poeta é fácil. Um pouquinho de sentimento, uma frase iniciada com letra maiúscula, outras frases colocadas abaixo da primeira e ponto final. Pronto. Fiz um poema. Poeta que é poeta saque que fazer poesia não é mole mas consegue escrever um poema até quando a inspiração está efervescente no intestino e “não quer sair”. Preste só atenção em Drummond .
“Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira”.
Eis aí o Estado de Poesia, comoção lírica todos nós temos pelo menos uma vezinha na vida. Transformá-los em verdadeiros poemas é que são elas. Artur Gomes começou, como todo mundo, fazendo seus versinhos, mas desde o início, revelou um pendor incomum. A poesia para ele , era compromisso e não diletantismo ou fuga. Bem cedo, suas antenas sensíveis perceberam as misérias do mundo, particularmente as do em que ele vive, o terceiro. Sem armas brancas ou de fogo, impossibilitado de se transformar em guerrilheiro, ele fez da poesia, uma arma que cada dia afia mais.
Terceiro mundista, brasileiro e malandro, ele não quis saber de espada, cimitarra, alfanjes, floretes, sabres e alabardes para travar suas lutas. Em vez, preferiu a navalha que corta frio e fino, sem que a gente perceba, até o sangue começar a escorrer. E sua marca não sai mais. Os poemas de Artur Gomes cortam feito navalha e deixam uma cicatriz indelével que nem plástica remove. Implacável e habilidoso no manejo da sua arma , ele arremete contra os fabricantes de injustiças. Sua poesia revela preocupações sociais, políticas e ecológicas, não poupando os mitos forjados pela história. Além de contestador, iconoclasta.
Não se pense, porém que Artur Gomes vive mergulhado em profunda amargura. Ele sabe cantar também os prazeres do amor, do erotismo, a luxúria do ambiente tropical e o goso pela vida. Sua poesia é também resistência à desfiguração cultural do nosso país. Nem se pense também que a poesia em suas mãos, se reduz a um instrumento de protesto. Conquanto crítico e preocupado com o social, o político, e o ecológico, Artur Gomes demonstra também uma grande preocupação com questões técnicas. Artista, ele também é artesão. Trabalha seus poemas à exaustão, procura explorar as possiblidades da palavra e o suporte físico da página. Faz experiências no campo do concretismo, construindo poemas com palavras decompostas que só podem ser inteiramente compreendidas visualmente: a pá lavra; re-par-tiu-se. Eis dois exemplos. Mas é fundamentalmente para o ouvido que se destinam os seus poemas. O espaço em que faz zunir e reluzir a sua navalha é sonoro e musical. O tempo passa e os poemas de Artur Gomes tornam-se cada vez mais musicais e ritmados.
Outro traço que se acentua na evolução do seu trabalho: a concisão. A cada livro publicado, nos deparamos com um poeta sempre mais econômico. Na linha de um Oswald de Andrade e de José Paulo Paes, ele escreve poemas curtos, enxutos, incisivos, que ferem como o diabo. Não rompe com a rima e com a métrica, mas não se deixa aprisionar por elas. Ambas estão presentes o tempo todo em seu trabalho sem que se possa garantir que não sejam ocasionais. A rima, por exemplo quando rompe, traz um efeito inusitado. Tanque rima com ianque, parque rima com dark. E aqui há outro aspecto digno de registro: Artur Gomes incorpora as novidades, mas nunca fica deslumbrado com elas. É moderno muitas vezes experimentalista, mas respeita a tradição. Não sei de suas leituras, mas deve tomar bênção aos clássicos. Não rompe com a métrica, com a rima e com a estrutura do poema, mas não cai na poesia convencional. É agressivo, mas não perde nunca de vista o sentido maior da poesia. Isso não quer dizer, em contrapartida, faça arte pela arte, mas muito menos significa que se deixa envolver nas facilidades da poesia de protesto feita sob encomenda.
O poeta está aí, inquieto, equilibrando-se na corda bamba. Pode começar a ler os seus poemas, leitor. Agora se você faz parte daquele grupo de pessoas que tiram partido da miséria e destruição, tome cuidado com Couro Cru & Carne Viva. Os poemas navalha de Artur Gomes certamente não terão piedade de você.
Aristides Arthur Soffiati
Campos, agosto de 1987
*
I
O DIA EM QUE MEU CAVALO RESOLVEU PINTAR AS CORES DA BANDEIRA
a pá/lavra
arma poesia
terra de santa cruz
ao batizarem-te
deram-te o nome:
puta
posto que a tua profissão
é abrir-te em camas
dar-te em ferro
ouro
prata
rios peixes minas mata
deixar que os abutres
devorem-te na carne
o derradeiro verme
in(confidência mineira)
sal gado mar de fezes
batendo nas muralhas
do me sangue confidente
quem botou o branco
na bandeira de alfenas
só pode ser canallha
na certa se esqueceu
das orações dos penitentes
e da corda que estraçalha
com os culhões de tiradentes
retórica
salve lindo pendão que balança
entre as pernas
abertas da paz
sua nobre sifilítica
herança
dos rendez-vous
de impérios atrás
eco lógica
fosse o brasil
mulher das amazonas
caminhasse passo a passo
disputasse mano a mano
guardasse a fauna e a flora
da fome dos tropicanos
ouvisse o lamento dos peixes
jandaias araras ciganos
nossos indígenas africanos
não estaríamos assim condicionados
aos restos do sub-humano
terceiro mundo
sonho rola no parque
sangue ralo no tanque
nada a ver com tipo dark
muito menos com punk
meu vício letal é baiafro
com ódio mortal de yanque
sub/VERSÃO
só desfraldando
a bandeira tropicalha
é
que a gente avacalha
com as chaves dos mistérios
dessa terra tão servil
tirania sacanagem safadeza
tudo rima uma beleza
com a pátria/mãe que nus pariu
pátria a(r)mada
só me queira assim caçado
mestiço vadio latino
leão feroz cão danada
perturbando o seu destino
e só me queira encapetado
profanando àqueles hinos
malando moleque safado
depravando os seus meninos
só me queria enfeitiçado
veloz macio felino
em pelo nu depravado
em sua cama sol a pino
e só me queira desalmado
cão algoz e assassino
duplamente descarado
quando escrevo e não assino
relatório
I
na sala ficaram cacos de pratos
espalhados pelo chão pedaços do corpo retidos entre o corredor após o interrogatório um cheiro de pólvora e mijo misturados a dois ou três dias sem banho depois de feito sexo
só o fogo da verdade exalando odor e raiva quando em verde conspiravam contra nós
em são cristóvão o gasômetro vomitava um gás venoso nos pulmões já cancerados nos quartéis da cavalaria
II
eu me lembro
o sentimento era náuseas nojo asco
quando as botas do carrasco
bateram nos meus ombros com os cascos
jamais me esqueci o nome do bandido escondido atrás dos tanques
e
se chamavam
dragões da independência
e a gente ali na inocência
comendo estrumes engolindo em seco as feridas provocadas por esporas
aguentando o coice o cuspe
e
a própria ira
dos animais de fardas
batendo patas sobre nós
III
com a carne em postas sobre a mesa
o couro cru o coração em desespero
o sangue fluindo pelos poros pelos pelos
eu faço aqui
meditações sobre o presente
re cria ando
meu futuro
tentando só/erguer
as condições pra ser humano
visto que tornou-se urbano
e re par tiu
se
em mil pedaços
visto que do sobre-humano
restou cabeça pés e braços
pós: ANT:PÓS
enquanto nós poetas
tentamos mostrar
a burguesia lá
do alto
qual de nós
é mais concreto
os profetas do planalto
vão fudendo o povo inteiro
com um pau
bem grosso e reto
- e a poesia?
continua não passando
de um simples objeto
art pop
macunaíma
ilumina o lobisomem
na selva de new York
o rato roeu ea roupa
do gênio da art pop
nosso samba popular
não precisa ser estar
cantando rock
geleia geral
a coisa por aqui
não mudou nada
embora sejam outras
siglas no emblema
espada continua a ser espada
poema continua a ser poema
pessoa
não tenho pretensões
de ser moderno
nem escrevo poesia
pensando em ser eterno
veja bem na minha língua
as labaredas do inferno
e só use o meu poema
com a força de quem xinga
II
rente a pele
contra o muro
eu te grafito no escuro
quero um poema que revele poesia em sua pele
genital
pasto no cosmo
a soja secular de Jardinópolis
onde os discos-voadores
sobrevoam meu nariz
na cara das metrópólis
no centro ao sul
os cemitérios
possuem mais mistérios
que a nossa vã filosofia
tem um animal de vagina espacial
na poesia
&
um grande pênis roxo
milenar
feito aspiral em círculo
preparando imenso orgasmo
pra festejar o fim do século
BR – 101
ah! meu amor
não te esqueci
ainda procriando no meu corpo
os micróbios do teu sangue
enlouqueci
overdose nu vermelho
retesar as cores
e os músculos
com os dedos agarrados no pincel
se faltar carne
pra roçar os óvulos
a gente jorra tinta no papel
magia
quando meto pés
em tuas matas
selvagem índio
pássaro animal
devasto céus sem ter limites
com poesia sobrenatural
tropicalirismo
girassóis pousando
nu teu corpo: festa
beija-flor seresta
poesia fosse
esse sol que emana
do teu foto farto
lambuzando a uva
de saliva doce
tropicalha
vendo a lua leviana
no império das bananas
papagaios periquitos
graviola
a fruta eu chupo morena
semente eu planto cigana
na selva pernambucana
nossa língua deita e rola
poderia abri teu corpo
com meus dentes
rasgar panos e sedas
com as unhas
arreganhar as tuas fendas
desatar todos os nós
da tua cama
arrancar os cobertores
rasgando as rendas dos lençóis
perpetuar a ferro e fogo
minhas marcas no teu útero
meus desejos imorais
mal/dizendo a hora soberana
com a força sobrehumana dos mortais
quando vens me oferecer migalha e fruto
como quem dá de comer aos animais
alucinações (in)terpoéticas
o que é que mora
em tua boca bia?
um deus um anjo
ou muitos dentes claros
como os olhos do diabo
e uma estrela como guia?
o que é que arde
em tua boca bia?
azeite sal pimenta e alho
résteas de cebola
carne krua do caralho
um cheiro azedo de cozinha
tua boca é como a minha?
o que é que pulsa
em tua boca bia?
mar de eternas ondas
que covardes não navegam
rios de águas sujas
onde os peixes se apagam?
ou um fogo cada vez mais dante
como este em minha boca
de poeta/delirante
nesta noite cada vez mais dia
em que acendo os meus infernos
em tua boca bia?
lunática
um gato noturno
atira pedra nas estrelas
palavras e mais palavras
na carne da princesa
onde o papel não bate
onde o pincel não toca
o gato noturno lambe a barriga
bem perto da virilha
e trepa
no muro mais próximo
tentando alcançar o outro lado das rua
em seu instante letal
de desespero e solidão
froydiana
azul são os teus olhos
a cor dos pelos não conheço
teus seios ainda não toquei
dracena – é uma terra roxa
nave extra/terrena
que humanos não decifraram
pequena vagina/virgem
onde os dedos ainda não entraram
e os cachos de uvas
apodrecem entre teus dentes
com um cheiro de leite ardente
esguichando na distância
alguma poesia
não bastaria a poesia deste bonde
que despenca lua nos meus cílios
num trapézio de pingentes onde a lapa
carregada de pivetes nos seus arcos
ferindo a fria noite como um tapa
vai fazendo amor por entre os trilhos.
não bastaria a poesia cristalina
se rasgando o corpo estão muitas meninas
tentando a sorte em cada porta de metrô
e nós poetas desvendando palavrinhas
vamos dançando uma vertigem
no tal circo voador.
não bastaria todo riso pelas praças
nem o amor que os pombos tecem pelos milhos
com os pardais despedaçando nas vidraças
e as mulheres cuidando dos seus filhos.
não bastaria delirar Copacabana
e esta coisa de sal que não me engana
a lua na carne navalhando um charme gay
e um cheiro de fêmea no ar devorador
aparentando realismo hipermoderno
num corpo de anjo que não foi meu deus quem fez
esse gosto de coisa do inferno
como provar do amor no posto seis
numa cósmica e profana poesia
entre as pedras e o mar do Arpoador
mistura de feitiço e fantasia
em altas ondas de mistérios que são vossos
não bastaria toda poesia
que eu trago em minha alma um tanto porca,
este postal com uma imagem meio Lorca:
um bondinho aterrissando lá na Urca
e esta cidade deitando água em meus destroços
pois se o cristo redentor deixasse a pedra
na certa nunca mais rezaria padre-nossos
e na certa só faria poesia com os meus ossos.
Artur, acabo de ler as publicações
recebidas, gostei muito da MVPB/11. Novos rumos. Gostei do Suor & Cio.
Poemas antológicos. Difícil destacar um.
Affonso
Romano de Sant`ana
*
Fortaleza, 4/9/86
Companheiro Buss
Acabo de ler o “Boi-Pintadinho”. Sinto-me boi na boiada de
Artur Gomes. O boi desse livro está reproduzido em todos os quadrantes. Esse
universalismo conseguido pelo autor é uma das coisas mais difíceis da arte poética.
Além do mais, está um livro bem transado graficamente.
Obs.: trecho de uma carta de José Batista de Lima,
para Alcides Buss.
Suor & Cio
MVPB Edições 1985
A Poesia Liberada de Artur Gomes
Há uma passagem em Auto do Frade, de João Cabral, que me chamou a atenção:
“-Fazem-no calar porque, certo, sua fala traz grande perigo. – Dizem que ele é perigoso mesmo falando em frutas passarinhos”.
Vislumbro aí uma espécie de definição do alto poder transgressor da poesia , do poeta, da arte em geral: deixar fluir uma energia de protesto e indignação, crítica e iluminação da existência, qualquer que seja o pretexto ou o ponto de partida.
Por exemplo - : Suor & Cio, novo poemário de Artur Gomes. Na sua primeira parte(Tecidos Sobre a Terra), temos um testemunho direto sobre as misérias e sofrimentos na região de Campos dos Goytacazes, interior fluminense. Não se canta amorosamente, as lavouras de cana de e grandes usinas, os aceiros e céus de anil. Ao contrário. Ouvimos uma fala que “traz grande perigo”, efetivamente ao denunciar – com aspereza e às vezes até com certo rancor – a situação histórico-social, bruta e feroz, selvagem e primitiva, da exploração do homem no contexto do latifúndio e da monocultura.
“usina
mói a cana
o caldo e o bagaço
usina
mói o braço
a carne o osso
Mas esta poesia dura, cortante e aguda, mantém igualmente a sua força de transgressão – continua revolucionária e perigosa – mesmo quando tematiza (principalmente em Tecidos Sobre A Pele, segunda parte do livro), as frutas, ou prazer sexual, os seios, o carnaval, o mar, e os impulsos eróticos. Por detrás dos elementos bucólicos e paradisíacos (só nas aparências, bem entendido), eis que explode o censurado o reprimido, o que não tem vergonha nem nunca terá:
“arando o vale das coxas
com o caule da minha espada
no pomar das tuas pernas
eu plano a língua molhada”
Por isso, frequentemente os poemas se debruçam sobre o próprio ofício do poeta, e sobre o próprio sentido do fazer artísticos. Ofício de artista, experiência de poeta: presença e risco e da violação das normas injustas: carnavalizando, desbundando a troup-sex, infernizando o céu e santificando a boca do inferno, denunciando o rufo dos chicotes, opondo-se aos donos da vida que controlam, o saldo, o lucro e o tesão.
Os versos de Artur Gomes querem ser lidos, declamados, afixados em cartazes, desenhados em camisas. E vieram para ficar nas memórias das bibliotecas da nossa gente, apesar do suor e do cio, graças ao suor e ao cio:
“com um prazer de fera
e um punhal de amante”.
Uilcon Pereira
são paulo, julho, 1985
*
Mesmo com incursões no teatro e na música popular, Artur Gomes se mantém fundamentalmente poeta. Retrata o homem, enquanto ser social , sem perder contudo as transparências individuais. Com “Suor & Cio” penetra na realidade de nossa Campos dos Goytacazes, onde a rudeza das vidas nos canaviais contrasta com o fausto dos casarios.
Ao denunciar a estreiteza da vida dos trabalhadores o faz em tom poético e, consequentemente perceptível à sensibilidade humana, sem descambar para o panfletarismo – atalho fácil para os que não conseguem superar a barreira da criatividade. Por ser criativo dentro de uma simplicidade envolvente, Artur Gomes descobre nos atos comuns razões que transcendem à percepção média. Nunca é demais lembrar que “o homem comum vê; o artista antevê.”
Na primeira parte de “Suor & Cio”, dedica-se à denúncia político-social mas na segunda “Tecidos Sobre A Pele”, faz observações sobre a fonte inesgotável de todos os poetas – o Amor. Contundente, às vezes, Artur assume corajosamente vontade quase sempre nunca explícitas. Comprimido por convenções sociais, o homem deixa-se omitir optando por metáforas frustrantes. Artur com sua poesia resgata a possibilidade de sermos plenos.
Celso Cordeiro Filho
Jornalista
*
Para ROSANA
FLORA
E FILIPE
I parte
Tecidos Sobre A Terra
*
FILIPE
filho de poeta
faz da terra
água e pão.
dilata músculos
do pai
clareia ventre
da mãe
retesa nervos
das mãos
encharca vasos
do corpo
transborda veias
do chão
TERRA
antes que alguém morra
escrevo prevendo a morte
arriscando a vida
antes que seja tarde
e que a língua
da minha boca
não cubra mais tua ferida
II
entre/aberto
em teus ofícios
é que meu peito de poeta
sangra ao corte das navalhas
minha veia mais aberta
é mais um rio que se espalha
III
terra, o que me dói
é ter-te devorada
por estranhos olhos
e deter impulsos
por fidelidade
URBANUS
debruçam no meu peito
sinais de sonhos, marcas
de fracasso
trafega entre meus dentes
vinhoto nas gengivas
saliva no bagaço
entre os bueiros
do meu ventre
coração em carne viva
sangra do homem
seus pedaços
UTOPIA
ó terra incestuosa
de prazer e gestos
não me prendo ao laço
dos seus comandantes
só me enterro a fundo
nos teus vagabundos
com um prazer de fera
e um punhal de amante
CAMPOS
levo-te nas entranhas
fuligem ferro pó
e o ódio declarado das usinas
injetado na veia
até os ovos
nos olhos:
a visão encarnecida
do rufo dos chicotes
na cara e no suor
levo-te: escrava
na certeza de não mais
sangrar em teus aceiros
ou enterrar-me até os ossos
em teus canaviais
MOAGEM
na orgia verde
de uma nova safra
o homem lavra
:
a esperança atenta
nos lençóis de palha
ENGENHO
minha terra
é
de senzalas tantas
enterra em ti
milhões de outras esperanças
soterra em teus grilhões
a voz que tenta – avança
plantada em ti
como canavial
que a foice corta
mas cravão em ti
me ponho à luta
mesmo sabendo – o vão
- estreito em cada porta
Obs. Este poema está publicado na Antologia CARNE VIVA poesia erótica org. Olga Savary – 1984 -
usina
mói a cana
o caldo e o bagaço
usina
mói o braço
a carne o osso
usina
mói o sangue
a fruta
e o caroço
tritura suga torce
dos pés até o pescoço
e do alto da casa grande
os donos do engenho controlam
o saldo & o lucro
USINA
rente à palha dos aceiros
o suor escorre à face
nas entranhas do nariz
e no solar da casa grande
é uma tarde de festas
regada a vinhos de Paris
ACEIRO
o sol esconde a ira
e vem o parto
como fruto
pois é aqui que o homem sangra
para o lucro e o saldo bruto
CANAVIAL
minha terra é aqui
onde e barro e carne
misturam-se num só corpo
onde suor e sangue
transformam-se
em um só espírito
onde matar a sede
é não ter o líquido
e matar a fome
é não ter o pão
onde o negror da pele
me transporta ao fogo
dos olhos de maria
na primeira escravidão
SANTA CRUZ
como outra qualquer
vai moendo
sem adiantar gritar
que está doendo
porque o dono da usina
vai metendo
até que entre os dentes da moenda
escorra o caldo da moagem
e só o dono da engrenagem
vai bebendo
cacomanga
ali nasci
minha infância
era só canaviais
ali mesmo aprendi
a conhecer os donos de fazendas
e odiar os generais
NOVO HORIZONTE
um padre de saia preta
segue à risca
seus instintos
tendo o usineiro do lado:
dá hóstia para os famintos
e vento pros flagelados
BAIAFRO
essa áfrica nos meus olhos
e navegar é minha sina
em toda febre todo fogo
que incendeia o continente
nos teus olhos de menina
eu sou um poeta
e nunca fui a china
mas vermelho é o meu sangue
desde que nasci
sede dos meus olhos
carinhosamente
bebo os olhos teus
pra matar a sede
e aflição dos meus
toda água desse rio
beberia eternamente
pois a minha sede
não morre de repente:
é paixão
que não tem hora pra chegar
barco que vai embora
sem saber voltar
navegando mar inteiro
vales rios velas cais
pois a sede dos meus olhos
não se mata nunca mais
equilibrista
sei que os loucos
sempre cantam nos hospícios
e eu, canto aqui
o meu poema carne & osso
comendo as sobras do tacho
raspando o fundo do poço
correndo o mesmo perigo
enquanto ginga enquanto samba
minha palavra meu ofício
mas uma vez na corda bamba
passando a limpo
I
loucura é não entender
a razão da poesia
em universo cosmo plástico
língua transcendental
em céus de boca
onde palavras tomam formas
e flutuam dimensões
II
loucura é não perceber
a santidade dos ladrões
a fome a sede o vício
coisas da social e da favela
“a carne seca na janela”
o desfile da portela
a mangueira verde e rosa
e os ratos passeando nos porões
III
loucura é ouvir
o rugido dos leões
na arquibancada
do pão que o diabo amassou
e não cumer a outra banda
que o brasil deu pra hollanda
não sacar paulo ciranda
essa finíssima presença
nem conhecer marco valença:
ó baby
loucura ainda nem começou
gesta
feroz
o índio
ainda via
o sol
a festa
fazia
o parto da raça humana
que hoje se desengana
e gente não pari mais
indi/gesta
ê fome negra incessante
febre voraz gigante
ê terra de tanta cruz!
onde se deu primeira missa
índio rima com carniça
no pasto pros urubus
indígena
coração tombado
no tacape branco
:
fogo e fúria
de fuzil
onde o planalto mata
veia agonizando
na feroz/cidade
banco do brasil
herói nacional
meu coração marçal tupã
sangra tupi e rock and roll
meu sangue tupiniquim
em corpo tupinambá
samba jongo maculelê
maracatu boi-bumbá
a veia de curumim
é coca cola e guaraná
tirania
ó baby
o meu sangue não é blue
nem tampouco jazz
em tua carne azul
estou de pé
olhando o front
e não aceito o horizonte
com a tirania do norte
ditando regras no sul
sonhando estar em cuba
meu coração
não é de osso não é de vidro
não é de aço nem é de pedra
impunimente é só coração
meu coração não é de hoje
conta por conta guarda em segredo
ama de longe ativamente
é só coração
meu coração não é verde amarelo
mas vive num país independente
só faz revolução não se arrepende
tramando a nova forma
do que sente
quando rumba brasileiramente
quando dança
algum bolero ardente
sonhando estar em cuba
macumba libremente
braziliana
coração amordaçado
é simplesmente
nervo retorcido
coração apunhalado
é plenamente
nervo meu ferido
sangra coração
em pele e osso
couro envelhecido
salta numa praça
brinca de pirraça
mesmo assim fudido
tro/pica/lizando
I
o poeta esfrangalha a bandeira
raia o sol
tropical bananeira
na geleia geral brasileira
o céu de abril
não é de anil
bem general é my brazyl
II
minha verde amarela
esperança
portugal já vendeu
para a frança
e o coração latino
balança
entre o mar
de dólar do norte
e o chão
do cruzeiro do sul
III
o poeta estraçalha
a bandeira
raia o sol marginal
quarta-feira
nessa porra estrangeira
e azul
que a muito índio dizia:
“foi gringo
que trouxe no cu”
re/verso
oswaldianamente
ainda não sei bandeira
nem levo o barco
ao rei da vela
:
minha paixão
ainda é mangueira
desfilando na portela
seio da terra
bem no centro do universo
te mando um beijo ó amada
enquanto arranco uma espada
do meu peito varonil
espanto todas estrelas
dos berços do eternamente
pra que acorde toda essa gente
deste vasto céu de anil
pois enquanto dorme o gigante
esplêndido sono profundo
não vê que do outro mundo
robôs te enrabam ó mãe gentil!
para Torquato Neto
aqui estou na brasileia tropicalha
em populácea militância
pornofágica
desbundando a marginalha
em poesia su-real
para esquecer que a circunstância
é um pouco trágica
e não dizer
que o meu brasil dançou geral
trincheira
há uma gota de sangue
entre meus olhos
e os teus
e muitas velas acesas
pra salvar a nossa carne
e bocas cheias de dentes
mastigando a nossa morte
mas eles é quem morrerão
meu amor: num grande susto
quando nus virem
amando nessa cama
de ferro e de pau duro
1º de abril de abril
telefonaram-me
avisando-me
que vinhas
na noite
uma estrela
ainda brigava
com a escuridão
na rua
sob patas
tombavam
homens indefesos
esperei-te
20 anos
e até hoje
não vieste
à minha porta
- foi um puta golpe!
brasil
este país
nunca existiu
aqui
nunca tivemos
1º de abril
é brincadeira da minha poesia
putaria do meu coração
tudo não passou de fantasia
- ou obra de ficção
II parte
TECIDOS SOBRE A PELE
flora
reluz em mim amor e flora
que tal riqueza em luz aflora
clara evidência total menino
com tal beleza voz e destino
e se não fores mansa
é que virás do mar
e virás da mãe flor lumiar
e virás da tarde e do amanhecer
e será tão linda que ainda vai saber
:
se andei por folhas
foi pra te germinar
e deixar sementes
pra te alimentar
e se não fores flora
é o que vou fazer
desse grão de vida
que estás pra nascer
coração de galinha
não sou tigresa
em tua cama
nem caviar em tua mesa
não sou mulher de fama
muito embora sempre tesa
não vim da boca do lixo
saí da pele do ovo
meu coração de galinha
virou orgasmo do povo
coito
teu corpo é carne de manga
em meu pênis viril
enquanto sangra
quando beijo tua boca
enfurecido
rasgando por trás
o teu vestido
cor da pele
áfrica sou: raiz & raça
orgia pagã na pele do poema
couro em chagas que me sangra
alma satã na carne de Ipanema
o negro na pele
é só pirraça
de branco
na cara do sistema
no fundo é amor
que dou de graça
dou mais do que moça
no cinema
carne proibida
o preço atual
proíbe
que me coma
mas pra ti estou de graça
pra ti não tenho preço
sou eu
quem me ofereço
a ti
:
músculo & osso
leva-me à boca
ofício
ponho minha gema
em tua blusa
para que pule
no teu peito
minha musa
toda tensão
de ter tua pele
em meu poema
profissão
meu ofício
é de poeta
pra rimar
poema e blusa
e ficar em tua pele
pelo tempo em que me usa
frutas
no vermelho dos morangos
marron dos sapotis
na pele das romãs
carne das goiabas
polpa das amoras
licor das melancias
e tropical abacaxi
no gosto que elas tem de beijo
e jeito que elas tem de sexo
penetro os dentes mordendo
chupando dragando em ti
a terra das frutas na boca
arando o vale das coxas
com o caule da minha espada
no pomar das tuas pernas
eu planto a língua molhada
primeiro amor
montado no sol a pino
no pasto do céu em chamas
eu cavaleiro menino
enlouqueci na sua cama
vôo selvagem
I
correndo nos cavalos
cresceu
meu coração de égua
enxertado
em ilusões de águias
II
meu coração galopa
pelo campo à fora
no dorso dos poemas
na pele das esporas
III
diante da cerca
estão os bois
saciando o sexo:
corpos ao sol
selvagens & parceiros
guiados pelo odor
amando pelo cheiro
IV
no pasto
o encontro boca à boca
a égua abriu-se toda
para que nela
entrasse
bastasse ver
o seu pulsar
e gozo
para que o alazão também
:
entre o capim
gozasse
V
com espada em riste
galopamos pradarias
e lutamos ferozmente
por dois segundos e meio
tua fúria era louca
e agarrei-me em tuas crinas
para não cair na lama
mas o amor era tanto
e tanto era o prazer
quando fomos pra cama
não tinha mais o que fazer
coração civil
meu coração vadio
quando está no cio
faz comício
em seu quintal
vai pro bar e bebe o rio
e canta um hino nacional
tempero
é preciso socar certas palavras
com sal pimenta & alho
para dar o gosto
o ardido
que se traz na boca
é tempero mal cuidado
é preciso cortar o mofo
das ações de certas palavras
para quando for poema
ter ação presente
penetrar a carne
e ter sabor de gente
mulher
meu poema
se completa
em seu vestido
roçando sua carne
no algodão
tecido
minerador
I
mulher é lua nova luz ativa
teu corpo manso
é cobre nos meus braços
um fogo em prata
aceso nos meus olhos
minhas gerais
senhora dos meus passos
II
para plantar teu corpo
em meu ofício
é que me fiz
metade em seu amor
para plantar a flor
no meu suplício
é que me fiz de ti
minerador
III
coberto em couro cru
& carne viva
amor brilhante diamante e luz
estrela e nave nua corre linda
sobre teu seio
desperto em vera cruz
IV
no sol que banha
o teu suor e sangue
unhas de ferro
coração de cobre e aço
veia da américa
canção e flor do mangue
cortina aberta
estrada pro meu leito
metade de um país
metade do meu peito
rosana
nadar por sobre o peixe
dos seus olhos
e penetrar as profundezas
do teu útero
assim quando prepara
um outro nascimento
na escuridão
que a sua luz dê Flora
e com um membro teso
vazar a claridade
que em teu seio mora
aline
o mar é um grande macho
quando vagas ondas
te pulsando água
no pontal das pernas líquidas
penetrando ventre
pelos poros pelos
que desaguam frutos
de uma branca espuma
despetalando o bico
dos teu seio enxuto
simone
muito mais de um desejo
que não basta
o meu poema arrasta
um nome de mulher
na língua ultra molhada
marés e temporais
enchente alto mar
teu corpo navega
sem cais para ancorar
elis
pau latina
mente
procuro o passo
te encontro pelo
à porta desse posso
em pele de estopim
:
e um barril de pólvora
explode no meu peito
puta que pariu!
mulher, estás em mim
atafona
vaza meu corpo
seu nome atravessado
terminal nas minhas coxas
lançado ao mar das suas costas
onde ancoro meus navios
retesando o braço dos meus rios
na maré dos seus pontais
peixe punhal de branco sal
em suas pernas sensuais
quando sangra nos meus cios
toda água do seu cais
marisa gata mansa
afundas
tuas unhas fundas
viajas sub mundo
em doses de tensão
quando vibra tua voz
na voz do coração
e tua alma leve
tudo leva
tudo voa
quando tuas garras
de animal
sangra minha carne
de pessoa
halley
penetraria eu
o mar revolto em tua boca
queimando ao fogo do inferno
nus teus órgãos
grudado em tua pele
tudo em pelo
como quem montado
em tua alma
galopasse a língua fria
feito um cavaleiro
que nos céus
cavalgasse o corpo de mulher
cometa incendiando a luz do dia
carnavalizando
tropicaetanamente
meus versos uilconianos
em carnaval pela cidade
vão ficar durante o ano
desbundando a troup-sex
e a mulatinha andradiana
com bundinha a caetano
despe a gil bertinidade
no patamar do meu triplex
boca do inferno
por mais que te amar
seja uma zorra
eu te confesso amor pagão
não tem de ter perdão pra nós
eu quero mais é teu pudor de dama
despetalando em meus lençóis
e se tiver que me matar que seja
e se eu tiver que te matar que morra
em cada beijo que te der amando
só vale o gozo quando for eterno
infernizando os céus
e santificando a boca do inferno
apartamento
entre teu quarto e sala
trafego meus cavalos
com o prazer domando a fala
no quintal da tua cama
roçando a língua enquanto falo
nosso orgasmo se inflama
êxtase
deixa eu pousar
pelo animal ereto
pulsando em tua boca
meu amor contrário às leis
expondo a fúria
do meu coração em festa
na virilidade
da sua pulsação
quando aninhar meu falo
em tua língua tesa
pondo a linha do horizonte
presa
na plenitude da ejaculação
flor da pele
I
o beijo que não te dei
é parte que ainda
não re/partiu de mim
o que te dou
está na boca
fruta mordida
em teu seio
:
carne de amendoim
II
uma mulher caminha nua
na ponta da minha estrela
ou na ponta da tua estrela – nua
caminho eu
parte do mar e do fogo
na língua na assombração
parte da terra e do vento
na carne do pensamento
lavras do teu vulcão
III
alguma estrela cadente
varreu o pó do meu sangue
beijou o chão dos meus olhos
e o fogo azul deste mar
em grave e cruel desespero
igual corrente gadeia
com dente velos de aflição
comeu a carne na poça
voou com os seios da moça
e fez-se em constelação
IV
para voar com tuas patas
é preciso estar de fato
com o corpo em êxtase
e todo sangue em poesia
pois se não no teu impulso
e voo pro grande sexo
sangrarás na virgindade
e morrerás de hemorragia
exercício
com um dedo
abro
a tuca boca vagina
com dois
aperto
o bico do teu seio
e
ultra/passo
a porta do teu meio
suor & cio
esperma do corpo meu
viaja dentro do teu
centro de espera
onde se vão
:
sonhos ilusões porções
de amor e gozo
água de rio
ao ter-te assim
carne animal
cheirando a cais
canção curral
suor & cio
confissão
se em ti estou
é para alimentar o que não sou
e o que sou
não é represa
é veia pública sob patas
postas de sangue na mesa
nada mais me desacata
nada mais me é surpresa
cansei de ser correto
deixei de ser decente
eu quero mesmo é o paladar
da tua língua entre meus dentes
ser/teu
aqui me tens,
nesse segundo orgasmo
:
mata-me de prazer
que ainda é tempo
tira depois
todo excesso de saliva
que sempre vem à boca
após cumprido o ato
no instante exato de ser/teu
:
morro
aqui e agora
e se preciso sempre
mas o pensamento é testemunha
ontem era uma outra
quem me possuiu
galope
teus órgãos tem o dom
de devorar entranhas
mexendo nervos músculos
em mim, cavalo não domado
quando em tuas pradarias
esporas por querer
nossa carne nos lençóis
do mais líquido prazer
luz do sol
molhada de mel
ponta de língua
espuma de sal
enquanto entra
no vale da púbis
quando vinga
o sol sensual
no seu estio
com a luz de cristal
gozando a fio
saliva meus dentes
enquanto beija
a boca entre/aberta
quando deixa
vagina em meus dedos
feito gueixa
poesia
I
chegas a mim
como uma égua assanhada
não quer saber do meu carinho
só que saber de ser trepada
II
eu te penetro
em nome do pai
do filho
do espírito santo
amém
:
não te prometo
em nome de ninguém
terra
amada
de muitos sonhos
e pouco sexo
deposito a minha boca
no teu cio
e uma semente fértil
nos teus seios como um rio
Da Carne Da Palavra - por Tanussi Cardoso
Ator, produtor, videomaker e agitador cultural, o poeta Artur Gomes tem assinatura própria. SagaraNAgensFulinaímicas, seu mais novo livro, repleto de citações a partir do título, é a prova generosa do que afirmo: um inventário da pulsação de sua escritura, uma das mais iluminadas, entre os remanescentes da geração que se inicia nos anos 60-70.
Mesmo mirando certa desconstrução narrativa, o autor semeia as raízes culturais, germinadas naquelas décadas, que desabrocharam como furacão em nossa arte, principalmente vindas da canção popular, com sua palavra cantada, da poesia marginal, da Tropicália, do Concretismo, do poema-postal, da poesia visual, do cinema e, mesmo, dos quadrinhos.
Todo esse caldeirão cultural, todas essas referências e linguagens eram (são) muito próximas: Caetano, Gil, Torquato, Glauber, Leminski, Waly, Gullar, Hilda Hilst... E é desse quadro geracional (e bem lá atrás,Drummond, Murilo Mendes, Bandeira, Cabral, Quintana, Mário, Oswald e Guimarães Rosa - e principalmente -, a trilogia dos malditos: Rimbaud, Baudelaire e Mallarmé, além dos ecos do mestre beat, Allen Ginsberg), é desse manancial criativo que o poeta consegue desarmar o que nele se encontra envolto, de forma atávica, e reafirmar seus próprios tempo e potência, com o refinamento de sua fala.
Ao unir todo artefato onde exista possibilidade de poesia, Artur Gomes habita o lugar entre a palavra e a imagem, ao experimentar os sentidos que lhe chegam, sugando os afluentes existentes nas estruturas tradicionais de nossas artes, e reescrevendo-os a seu bel-prazer, num mix de nostalgia e futuro.
“visto uma vaca triste como a tua cara:
estrela cão gatilho morro
a poesia é o salto de uma vara”
De forma particular, o autor parece nos indicar algo que se confunde com transgressão, mas, ao mesmo tempo, mantém a linha tênue da poesia clássica, ao flertar com um romantismo de tintas fortes, e tocando, igualmente, o surrealismo, com uma violência verbal, que cheira à flor e à brutalidade. Cada poema possui sua própria respiração, pausa e pontuação emocionais. Quem não gostar de sangrar e ir fundo no mais recôndito dos prazeres é melhor não prosseguir na leitura, mas quem tiver coragem de encarar a vida de frente e se deliciar com versos saborosos e extremamente imagéticos, entre no mundo do poeta, de imediato, e sentirá a alegria de descobrir uma poesia a que não se pode ficar indiferente.
“a língua escava entre os dentes
a palavra nova
fulinaimânica/sagarínica
algumas vezes muito prosa
outras vezes muito cínica”
Ainda que não pretenda novas experiências formais, o autor consegue alcançar perspectivas ousadas e radicais, em vários enquadramentos linguísticos, sempre disponíveis para o espanto, já que quando falamos de poesia, tocamos em lados inexatos, onde qualquer inversão de objetividade, e da própria realidade, é sempre bem-vinda. Sua poesia tem muito da desordem, da inobservância de regras, do não sentido, e apresenta um discurso contrário a certo pensamento lógico, fazendo surgir nas páginas do livro, algumas impurezas saudáveis.
“te procurei na Ipiranga
não te encontrei na Tiradentes
nas tuas tralhas tuas trilhas
nos trilhos tortos do Brás
fotografei os destroços
na íris do satanás”
SagaraNAgensFulinaímicas nos apresenta uma peça de tom quase operístico e, paradoxalmente, para um só personagem: o Amor. E o desenho poético dessa montagem pressupõe uma grande carga lírica, alegórica e, tantas vezes, dramática, ao retratar o som universal da Paixão, perseguindo a imagem ideal dos limites do desejo. Seus versos são movidos por esse sentimento dionisíaco, e por tudo que é excesso, por tudo que é muito, como na música de Caetano.
“te amo
e amor não tem nome
pele ou sobrenome
não adianta chamar
que ele não vem quando se quer
porque tem seus próprios códigos
e segredos”
E indaga e responde:
“até quando esperaria?
até que alguém percebesse
que mesmo matando o amor
o amor não morreria”
Em seu texto, há uma espécie de dança frenética, onde interagem os quatro elementos do Universo – Terra, Água, Fogo e Ar – numa feitiçaria cósmica em contínuo transe mediúnico. Poesia que é seta certeira no coração dos caretas e dos conformados, ao apontar para as possíveis descobertas inesperadas da linguagem, inebriada pela vida, pelo cantar amoroso, pelo encontro dos corpos.
“e para espanto dos decentes
te levo ao ato consagrado
se te despir for só pecado
é só pecar que me interessa”
Dono de uma sonoridade vocabular repleta de aliterações e assonâncias, que remetem à intensa oralidade e à pulsão musical, refletindo no leitor o desejo de ler os poemas em voz alta, o poeta brinca com as palavras, cria neologismos, utiliza-se de colagens originais, e soma ao seu vasto arsenal de recursos, o uso das antíteses, dos paradoxos, das metonímias, das metáforas, dos pleonasmos e, principalmente, das hipérboles, através de poemas de impactante beleza. Esse jogo vocabular, que a tudo harmoniza, transforma a dinâmica do verso, dá agilidade, tensão e ritmo envolventes a uma poesia elétrica e eletrizante. Um bloco de tesão carnavalizante e tropical - atrás de Artur Gomes só não vai quem não o leu.
“quero dizer que ainda é cedo
ainda tenho um samba/enredo
tudo em nós é carnaval”
De forma lúdica e irônica, reconstrói, ou reverte, as intenções de Guimarães Rosa, quando Sagarana se mistura à ideia de paisagens e ao sentido de sacanagens; e às de Mario de Andrade - onde Macunaíma reparte seu teor catártico em poéticas folias, ou em fulias de imagens, ou seja, em fulinaímicas poesias, banhadas de caos e humor.
“é língua suja e grossa
visceral ilesa
pra lamber tudo que possa
vomitar na mesa
e me livrar da míngua
desta língua portuguesa”
Ao seguir de perto o conceito metafórico do processo crítico e cultural da Antropofagia, o artista ratifica seus valores, com sua língua literária, e reafirma o ato de não se deixar curvar diante de certa poesia catequisada pela mesmice e pelo lugar comum, distanciando-se da homogeneidade de certo academicismo impotente e de certos parâmetros poéticos com que já nos acostumamos. De acordo com o próprio autor, revelado em uma entrevista, SagaraNAgensFulinaímicas é um pedido de bênção a seus Mestres, imbuído do teor catártico que sua poesia contém, como o fragmento do poema que abre o livro:
“guima meu mestre guima
em mil perdões eu vos peço
por esta obra encarnada
na carne cabra da peste”
E afirma:
“só curto a palavra viva
odeio essa língua morta
poema que presta é linguagem
pratico a SagaraNAgem
no centro da rua torta”
No livro, os poemas se interpenetram, linguisticamente, libidinosos, doces e cruéis, vampiros de imagens ferrenhas,num aparente jogo de representação, onde o rosto do poeta se mostra e se esconde, de acordo com a mutação e o reflexo de seus espelhos interiores. Seus textos ora afirmam, ora desmentem o já dito, a nos lembrar um de seus ídolos, Raul Seixas, e a sua metamorfose ambulante. Sentimentos contraditórios, como se o autor quisesse, propositalmente, escorregar segredos pelos nossos olhos, ambiguamente, rindo de nós, a nos instigar: “Desnudem a minha esfinge!”
“eu não sou flor que se cheire
nem mofo de língua morta”
Na verdade, sua poesia apresenta vários (re) cortes, várias direções, vários abismos e formas de olhar a vida e o mundo. Como se o verdadeiro Artur se dissolvesse em outros, a cada poema, e essa dissipação o transformasse em alguém improvável, impalpável. Errante. Artur Gomes, ele mesmo, são muitos. E todos nós.Afinal, “o poeta é um fingidor”, ou não?
“a carne que me cobre é fraca
a língua que me fala é faca
o olho que me olha vaca
alfa me querendo beta
juro que não sou poeta”
Tantas vezes escatológico e sensual, numa performance textual que parece uma metralhadora giratória, o seu imaginário poético explode em tatuagens, navalhas, sangue, cicatrizes, punhais, facas, cuspe, pus, línguas, dedos, dentes, unhas, seios, paus, porra, carne, flores e lençóis, como um paraíso construído num inferno, e toca o nosso céu interior, nas ondas de um mar verde escondido em nosso peito. Na nossa melhor alma.
Sem falsos pudores, o autor procura, em seu liquidificador de palavras, misturar o erótico, o profano e o sagrado, com cortes de cinismo e grande dose de humana solidariedade. Equilibrista na corda-bamba, sem rede de proteção, entre razão e delírio, instiga dualidades com seus versos de alta voltagem poética. Com linguagem rebuscada, seu trabalho ultrapassa os limites das páginas do livro, e reverbera como tambor, mesmo após o término de sua leitura.
“a carne da palavra
: POESIA
l a v r a q u e s o l e t r o
todo Dia”
A poesia de cunho social é, igualmente, referência obrigatória em seu trabalho, desde o início de sua carreira literária, marcadamente, em Jesus Cristo Cortador de Cana, de 1979, mas, principalmente, no memorável e premiado O Boi Pintadinho, de 1980. Esses poemas político-sociais, junto ao tema amoroso, também encontramos em outras obras importantes do poeta, como Suor & Cio, de 1985, Couro Cru & Carne Viva, de 1987 e 20 Poemas com Gosto de JardiNÓpolis & Uma Canção com Sabor de Campos, de 1990, e se inserem em todos os seus livros posteriores, que culminam agora em SagaraNAgensFulinaímicas.
Em suas viagens imemoriais, o poeta mistura São Paulo, Copacabana, Búzios, calçadas, origem, chão, mares, cactos, sertão, onde tudo sangra de maneira violentamente bela e sem volta. Só a língua a ser reconstruída em poesia.
“ando por são Paulo meio Araraquara
a pele índia do meu corpo
concha de sangue em tua veia
sangrada ao sol na carne clara”
Artur Gomes sabe que ao escritor cabe proporcionar beleza e prazer. Entende que a poesia existe para expressar a condição humana, tocar o coração e a emoção do outro, e dar oportunidade para que seu interlocutor tenha chances de conhecer-se mais e melhor. Eque só há um meio de o poeta conseguir seu intento: cuidar e aperfeiçoar a linguagem. Sempre coerente, Artur Gomes sublinha o essencial de seu pensamento, ratificando em seu trabalho que as duas maiores palavras da nossa língua são amor e liberdade.
“a coisa que me habita é pólvora
dinamite em ponto de explosão
o país em que habito é nunca
me verás rendido a normas
ou leis que me impeçam a fala”
SagaraNAgens Fulinaímicas veio confirmar o que os leitores do poeta já sabiam: Artur Gomes é um artista instigante, um cantador que desafia rótulos. No seu fazer poético, há um desfocar proposital da realidade, onírico e cinematográfico, que mergulha em constantes vulcões, em permanente ebulição – um texto em contínuo movimento. Sua poesia metalinguística, plástica, furiosa, delicada, passional, corporal, sexual, desbocada, invasiva, libertária, corrosiva, visceral, abusada, dissonante, épica é, antes de tudo, a poesia do livre desejo e do desejo livre. Nela, não há espaço para o silêncio: é berro, uivo, canto e dor. Pulsão. Textura de vida. Uma poesia que arde (em) seu rio de palavras.
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