À MARGEM
Eu não sou janela
— sequer porta —
guardo em mim
prisões antigas
em que receios fazem conluios
com devaneios de outros tempos.
Não me faças arruinar esperanças
— não sou feita em argamassas —
minhas fronteiras
— tão estreitas —
foram tecidas sem que camelos
consigam ultrapassar fendas de agulhas.
Não sou simétrica,
sou confusa
— quase obtusa —
meus ângulos sobrepostos
desqualificam hipotenusas.
Não tenho pisos,
meus pés são descalços de compassos,
minhas arestas são precipícios profundos.
Não queiras ocupar minha pele,
não te atrevas a conjugar
o silêncio que me comove,
nem te movas a alçar voo
em meus horizontes,
pois que minha prisão é perpétua
entre mim e a minha métrica.
Eu não sou aquela.
Nem a outra.
Se guardares a ânsia,
poderás vislumbrar um lampejo
da minha alma pendurada no vão da entrada.
Não me faças prometer descobertas!
Fui condenada à pena máxima:
não posso ser outra.
Não me desconheças:
eu sou aquela
na qual receios fazem conluios com esperanças!
Quem sabe assim pagarei o débito a mim imposto
por viver à margem da tua sentença!
Nic Cardeal
13.01.2019
(Publicado na coluna 'Nem Sempre a Lápis', do blog
da Scenarium Plural - Livros Artesanais, 16/01/2019)
* fotografia
de Paulo Henrique C. Paulo
Henrique Camargo Batista, c/ autorização (todos os direitos reservados)
@ph_camargo_batista
o belo me excita quando vem assim seminua não importa o sexo gênero cor
na imagem que me traga essa leveza de estar como pluma levitando sobre o poder
da gravidade não importa o nome ou o tipo de sangue que circula pelas veias nem
o sal do suor escorrendo pela pele enquanto aqui teço homenagem ao eros que me
come
DINÂMICA
Perguntaste às paredes
onde foi que deixaste teu olhar desesperado
por compreensão de tudo,
de todos?
Aquela vontade ingênua, quase louca, de te fazer
percebida?
A tua necessidade (quase) orgânica por reinos
invisíveis, desconhecidos?
Aquele resquício de felicidade
que ficou recostado do lado esquerdo do teu rosto?
A sede desmedida por alegrias duradouras?
Sequer decoraste a estrada depois da curva,
tens entre os dedos a incerteza da busca,
não soubeste decifrar desejos, anseios,
vocações ou dons,
nunca te disseram para estudar outras línguas,
nem que levarias jeito para esculpir
boas aberturas de respirar em realidades paralelas.
Quase sempre engoliste em seco,
sabotaste teus passos,
seguindo por rumos diversos dos previstos,
estiveste à beira de precipícios,
quantas vezes em milênios
tropeçaste em teus próprios cacos,
desististe, seguiste em frente, voltaste atrás,
paralisaste,
pecaste em todas as religiões,
confessaste em várias línguas,
estiveste muda, não quiseste ouvir.
(Esperaste tanto por respostas,
porém, nunca tentaste outras perguntas)
Talvez
a chave seja exatamente assim
: esvaziar perspectivas,
afinal,
a água só transborda
quando o recipiente se agita
[e tu, que nunca foste de loucas ousadias,
jamais te atreverias
a balançar teu co(r)po
para derramar o caldo
e perceber, enfim,
que o que te sobra sempre
é a alma
: tu - intacta, inteira, eterna].
(Nic
Cardeal, 20.01.2024)
( imagem do
Pinterest)
três poemas tortos para três
tristes párias expatriados
descer na escala social
cultivar verrugas e olheiras
depredar cidades inteiras
ferir o fluxo verbal
incitar catástrofes
expandir presságios
vender repolhos e bananas
violentar versos indefesos
descer na escala social
castrar novilhos ao luar
conquistar cicatrizes
catalisar catarses
opor princípios
evadir - se discreto
perder todas as lutas
matar todas as normas
descer na escala social
confabular com as moscas
agir ébrio
gozar quieto
desistir sempre
insinuar - se insano
amar mulheres sujas
plantar cebolas e aspargos
parir poemas mortos
descer na escala social
reinvidicar o direito
de ser
inútil
Intertexto :
Junkman' s Obbligato
A Coney Island of Mind,1958
Lawrence Ferlinghetti
a Paulo Lemimski
promessas para o ano vindouro
de futuras práticas dissociativas
************************************************
de perto
sou essa
distância
a noite
é apenas
uma palavra
suja
e escura
se estou
sempre fora
é porque
vivo dentro
de lá
espio
a fome é
uma palavra
espessa e
dura
se poeta
quando falo
silencio
a vida é
uma palavra
sem cura
uma noite
de fome
não tem
nome
é apenas
um vazio
dentro
calando
fora
nenhuma
palavra
toca o
agora
a Torquato
Neto
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não há saída
o poema preso
a língua insípida
nefasto instante infando
toda cidade é infinita
o que dói é não saber
até quando
:
perfeitas avenidas
atrás dos poetas
nenhum sol se esconde
os carros correm
os dentes caem
a vida passa
longe
:
práticos viadutos
ultrajes e insultos
um círculo de surtos
todo verso é omisso
abaixo do umbigo
tudo é permitido
daqui ninguém
escapa vivo
Intertexto :
Five to one
Wainting for the Sun, 1968
The Doors
a Jim Morrison
garbo
gomes
janeiro / 2023
Ilustração:
Ismael Nery
Guache
Sem data
— em Curitiba, Paraná
OUTRAS PRAIAS
1
O ar do verão vibrava como imitação
que os dedos do maestro regiam, Além,
(uma outra palavra para Adeus)
E sua ausência imediata, que são próprias
das coisas consideradas fora de seus centros;
Náufragas, como ilhas dispersas circundadas
por tanta Luz, e o mar hibernando o surf
das manobras rápidas, radicais, engolindo praias,
prises e personas
Uma tontura que persiste após
o estrondo doce do amor, antes e agora dobrando-se
no Tempo
Tudo a caminho, tudo rápida passagem, impressões,
a textura da areia, seixos
ao redor do sexo que é tudo e que sustém em
linguagem
Viva, a linguagem das marés e dos exercícios
estratégicos do vento
que uiva às coisas e nomeia lagoas e dunas, uma
gíria imaginária
O mar da página de jornal, gaivotas
bicando lâmpadas à procura de águas vivas,
quebrando-se
Cristais,
& uma visão do vórtex do vir-a-ser distraindo
as cores excessivas, todo ornamento inútil,
recolhidas em
fotografias dinâmicas, e que se revelam lentamente
em suas
ausências em fuga, como nós, aos pés destas
pedras, refletindo-nos
na mudança desse poço, em sua condição.
O que vemos daqui são gestos que querem o além
o reflexo de terras nunca vistas,
brisas nunca sentidas, uma viagem
sem volta a territórios livres, como nômades
detidos
no meio de uma tempestade obsessiva. O que
carregamos são espelhos que refletem sempre
o diferente, enquanto nós, eu e você
mudamos juntos. Nuvens
dissipam-se em doces fragmentos, sentidos acenam
do outro lado da baía, onde estivemos
Há alguns instantes que ficaram
Misturados com a lembrança do instante
diferenciado,
um ideograma na fumaça do cigarro, o haicai mais
simples
recolhido num vazio que vibra, diz, e muda.
Um brilho secreto, isso o mar também nos traz
sem cobrança alguma
e além do privado e do profundo jaz
o não dito, o absurdo de calar, o conferido:
penínsulas e abraços
de mar, studio marinho. E o modo como ele
endereça suas maresias a nós mudos e humanos
com seu estilo que no fim revela ser apenas
a mancha do mar em sua blusa, uma blueprint, um
sim.
2
O Agora voava, deixando nossas respostas
sem pergunta alguma.
Acabamos nos cruzando, a caminho da estação
onde nada se detém, na luz que grita atrás das
montanhas,
No som de nossas vozes e olhares assustados
como sempre
Sílabas apagando beijos como a maré faz com nossas
pegadas
recolhendo
Apenas o silêncio, o silêncio.
Registros de amanheceres sendo
Eternamente abertos para agentes secretos
Até que a página se vire como onda
Deixando paisagens no retrovisor
Longe de qualquer ideal de transparência ou
nostalgia.
Linhas que nada são a não ser a trajetória das
gaivotas
Deliciadas com as horas que ainda restam antes do
pouso.
Primeiro dia de sol, a casa está vazia.
Tesouras repousam quietas ao lado de
Gencianas. Nova Geografia. A cena
Está quase completa, viva nos músculos que apanham
rápido
um clichê qualquer no ar, uma sombra. A voz, cada
vez mais,
Se estilhaçava, ficando assim impossível dizer
Quem falava ou soprava o vento
no stylus das árvores rabiscando um céu
que não era bem assim
O que se queria dizer, um espaço implodido a cada
passo
Dentro do corpo onde a natureza sopra seu processo
As sentenças do mesmo rio nunca o mesmo rio
Códigos nascidos sem qualquer charme, e a gravidade
De tudo o que prossegue, indestrutível, viagem.
3
Aqui o céu é fino feito papel.
Regras se dissolvem como uma velha palavra na boca
velha manhã com um gosto de folhas secas na boca
Muito viva vívida doce e muito viva
distribuindo seu teatro, lírica barata, seu
Gesamtkuntswerk,
nos telhados onde pássaros respiram, quietos,
sendo observados por gatos negros e cantados
obsessivamente por
Cigarras. Invadem o verão. A indistinta voz que
distribui
sons secos pela estação dos sustos, para além de
si, desejo
De um presente acelerado como as ondas deste
doce Desterro,
O modo vazio e pleno como o olhar
faz
de tanta luz
o ar vibrar
Nos sentimos Oceanus, Pan, nos sentimos mais
humanos
& sacamos
parte da hera tomando a janela onde pouco ou nada
é dito
Apenas sentido, o limite de um "ouvir-se
dizer"
que já não diz, reprisa
Velhas cenas de um teatro previsível.
Apenas o espectador mudou no fim de tudo
E as estações se amontoam num canto do céu
esperando
Um milagre, uma confortável
Invisibilidade, que não tem nada a ver com
O excesso desse sol depois de três dias de chuva
Três úmidas palavras sussurradas e conduzidas como
o vento faz
Às nuvens, nada necessariamente difícil ou vazio
gruda à pele, livre
De qualquer engodo, assinatura, assunto.
Horas e horas de vidro, sentenças sem nome flutuam
no manso ar do verão do interior e suas diferenças
Vêm à tona, enfim, o que nos deixa ao menos
uma chance para ouvir uma chuva invisível
atrás da porta pela qual acabamos de passar.
Rodrigo Garcia Lopes
***
(Florianópolis, novembro de 1992)
Em "Solarium" (1994, Editora Iluminuras)
Link para loja virtual da editora:
https://www.iluminuras.com.br/solarium
Os Olhos Rasos de Água
"Cansado de
ser homem durante o dia inteiro
chego à noite com os olhos rasos de água.
Posso então deitar-me ao pé do teu retrato,
entrar dentro de ti como num bosque.
É a hora de fazer milagres:
posso ressuscitar os mortos e trazê-los
a este quarto branco e despovoado,
onde entro sempre pela primeira vez,
para falarmos das grandes searas de trigo
afogadas na luz do amanhecer.
Posso prometer uma viagem ao Paraiso
a quem se estender ao pé de mim,
ou deixar uma lágrima nos meus olhos
ser toda a nostalgia das areias.
É a hora de adormecer na tua boca,
como um marinheiro num barco naufragado,
o vento na margem das espigas."
Eugénio de Andrade
Si inaugura
domani a Civitanova Marche la seconda mostra "Stupor mundi", a cura
di Lucia Spagnuolo e Stefano Pelle. Vi partecipo con il mio " Pir meu cori
alligrari"
Cinzia Farina
Éramos
Valdir Rocha
Um poema de
Ernesto Cardenal, em tradução de Luís Avelima.
Ao perder-te
tu e eu teremos perdido.
Eu, porque tu eras
o que eu mais amava;
tu, porque era eu
que te amava mais.
Mas, entre nós dois
tu perdes mais do que eu.
Porque eu poderei amar outras
como amava a ti,
Mas a ti não te amarão mais
do que eu te amava
enquanto isso
em iriri
se entrega ao eros
seu canibal tupiniquim
ela no cio
e eu a ver navios
o belo nem sempre é bom
o bom nem sempre é belo
deixo as linhas sinuosas do complexo
irem seguindo o parabelo
Artur Kabrunco